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Jaime Munguambe: "A nossa mente é um palco de diversas visitas"

Por: Argola Isaque Argola

argolaisaque@gmail.com



Podemos considerá-lo uma das promessas da literatura moçambicana, particularmente da poesia. Jaime Munguambe nasceu em Maputo, no dia 27 de outubro de 1991. Foi editor da página de poesia "Revista Literatas" e tem colaboração dispersa em espaços de divulgação literária, em Moçambique, Portugal, Brasil, Angola, México, Espanha, Argentina. Foi membro do movimento literário Kuphaluxa. Colabora em antologias, revistas, jornais e blogues de publicação literária a nível nacional e internacional.

Em 2009 foi vencedor do Prémio Recital de Poesia do Conselho Municipal da Cidade de Maputo. E, em 2015 Prémio Literário do Banco de Moçambique, categoria de poesia. Publicou em 2016 o seu primeiro livro de poesia "As Idades do Vento" pela editora Fundação Fernando Leite Couto. Em 2020 participou no livro "Contos Crónicas Para Ler em Casa". Actualmente é colaborador e correspondente do projecto Biblioteca Popular del Barrio Gardel (Argentina) e membro do  Movimento Literário Kuphaluxa.



Massala Arte(MA): Quem diz ser Jaime Munguambe?

Jaime Munguambe(JM):  Respondo esta pergunta no olhar de outras pessoas sobre a pessoa de Jaime. Elas quando olham para mim vêem um jovem que gosta de livros, sobretudo, obcecado por poesia e acreditam que a partir dela é possível alcançar a essência humana; aquilo que muita gente procura na vida, que é a ideia da felicidade. Vivemos querendo a felicidade. Procuramos os bons dias e nunca os maus, o que é impossível. Por isso, a poesia vem revelar este lado humano. Nela buscamos o prazer, aquilo que alegra qualquer indivíduo no mundo.

Quando olho para mim vejo um jovem que acredita que a poesia é um minério extraído do subsolo da nossa imaginação, que para poder tê-lo envolve um exercício muito interessante. Porque criar beleza a partir de palavras é uma engenharia mental, não temos máquinas físicas, mas sim temos a mente, a imaginação, a atenção, a compreensão, temos aquilo que na psicologia chamam de órgãos sensoriais ou processos cognitivos, como elementos que fazem com que captemos tudo que acontece à nossa volta. 

MA: Muito já se escreveu e muito se está a escrever! Como atingir a essência humana dentro da poesia que a pouco se referiu?

Jaime Munguambe
JM: Parto do princípio que a vida é um enigma, um mistério. Usarei uma comparação da vida com uma amêndoa. Eu gostava muito de apanhar amêndoas em tempos de criança, sempre que ia à escola passava de um quintal, enquanto os donos dormiam, eu pulava o muro e ia apanhá-las. A inquietação que carregava, era, se o caroço da amêndoa estaria podre ou num bom estado. E a vida é assim, esse enigma, a sua essência é uma busca constante, um caminho infinito e contínuo. Isso significa que enquanto existirem as artes, a ciência, a religião, o senso comum, a vida sempre será um mistério que as diversas áreas de conhecimento irão pôr em causa os sentidos das coisas. É infinita a busca e o interesse do Homem, e cada um na sua área de actuação vai buscando compreender o ser humano. Por exemplo, a partir da poesia que é feita pelos surrealistas, do movimento artístico e literário nascido em Paris, Surrealismo com André Breton como principal líder e mentor, percebeu-se que o mundo não é lógico nem a nossa vida como a gente imagina. Eles criaram uma escrita baseada no inconsciente como forma de tentar interpretar a essência humana escrevendo sobre a realidade que vivemos. A escrita desses artistas guarda um mistério e o movimento foi influenciado pela psicanálise de Sigmund Freud. Nas artes plásticas, na fotografia podemos encontrar o surrealismo. De facto, a essência humana é um objecto de complexidades que não termina em uma área de saber.

Buscamos também na poesia o lado misterioso da vida, porque ela não é feita apenas de alegria, é também de tristeza. Ao lermos vários textos de grandes poetas nacionais e internacionais percebemos o amor que temos pelos outros e pela natureza, e vivemos várias vidas. A descoberta do amor, do ódio ou dos nossos sentimentos sobre seres, quando notamos que um poeta conseguiu trazer tudo em forma de palavras nos sentimos felizes ou nos identificamos com isso. Há coisas fantásticas, quando lidas em um texto poético vemos que o que está em jogo não são as palavras, mas o que elas pretendem de nós, pese embora, não sempre digam. Porém, elas servem de espelho onde mostramos nossos rostos e temos o retorno daquilo que somos, mas um retorno não absoluto.

MA: Jaime vê a mente como uma máquina. Como manuseá-la de modo a ter um futuro próspero, unidos não apenas para defender a paz, mas para vivermos celebrando a unidade dos homens?

JM: A nossa mente é um palco de diversas visitas. Ela recebe várias recordações da nossa infância, os eventos que nos acontecem actualmente e ela imagina o futuro. Máquina ou palco ela é invulgar e cria beleza a partir do meio que nos rodeia.

A paz é algo que deve partir do plano individual e assim será colectiva quando cada ser tiver consciência de não ferir o outro, não praticar violência contra o outro, para o bem dos Homens. Ela torna-se conjunta à medida que tomamos a noção de maneira individual que o outro também somos nós. A teoria Ubuntu ensina que temos de olhar o outro como olhamos a nós mesmos: "Tu és porque eu sou". "E eu sou porque tu és".

MA: Farei inversão da sua frase: Eu sou porque tu és. Tu és porque eu sou. Quando é começam a fluir palavras de gênero até regista-las no papel, para compartilhar ao mundo?

JMEste pensamento faz parte de uma teoria africana "Ubuntu". Escutei-o num debate que aconteceu na Universidade Eduardo Mondlane e interessei-me bastante por ele. Penso que há relação com a reflexão do filósofo René Descartes "Penso, logo existo". Isso significa que nós existimos quando sentimos que vivem pensamentos em nós, recordamos do outro. Os outros são porque nós somos. Quando escrevemos texto de qualquer gênero literário é claro que não pensamos de forma linear no outro, mas é para ele, considerando que o outro somos nós mesmos. Eu escrevo por exemplo, para me surpreender. Isto funciona como espécie de recreio, para ver o quão a mente tem a capacidade de criar novas possibilidades de olhar o mundo, baseando-se nos mistérios, em vivências, nas alucinações mentais. Digo alucinações porque há momentos que vamos à cama dormir e debatemo-nos com duas margens entre sono e não sono e a gente não sabe dar nome a essa fronteira que fica no meio entre o sono e não sono. É nesse instante que pensamos na vida. 

MA: Recorrendo a sua infancia, faz uma comparação entre amêndoa e a vida. Quem consigo quiser celebrar seu aniversário que data seria?

JM: É uma pergunta que veio num momento certo, porque recentemente conversava com minha amiga e procurou saber como passaria meu aniversário. Eu respondi-a com uma lembrança: Uma vez passei pelo bairro do Aeroporto e vi moradores de rua deitados num chão imundo, numa solidão difícil, tendo o céu como tecto que nós observamos as nuvens que, às vezes, fazem chuvas. Imaginei, em nada adianta fazer uma bela festa se não compartilhar o pouco que tenho com eles. 

Por isso, decidi, no meu aniversário irei distribuir refeições aos moradores de rua que vi no bairro Aeroporto, próximo ao 007 e noutros pontos da cidade de Maputo, embora iniba-se, a vida deve ser compartilhada. Somos a humanidade. É pena que não posso ajudar a todos, contudo, acredito que ajudando um membro de todo corpo que é a humanidade acabo mudando um pouco em parte. É uma altura em que começo a ver as coisas duma outra maneira. Tenho pensado nisso, para o dia 27 de Outubro corrente, data do meu aniversário, farei isso. 

MA: Como fará para reuni-los ao jantar, no tal dia?

JM: Olho para morador de rua como aquele que menos se interessa com um aniversário solidário, assim como com o aniversário de quem quer que seja, no entanto o que o interessa é a refeição pronta, esse e o aniversário. A vida é um paradoxo, observamos isso todos os dias.

Não os irei reunir, se pudesse faria, mas entendo que os moradores de rua são pessoas livres, compreendo que eles têm uma vida também individualizada. A oferta da refeição será feita de forma particular. Estarei com alguns amigos que abraçaram a causa e pessoas que quiserem ajudar, poderão entrar em contacto para juntos fazermos esta refeição a eles. Iremos circular pelas vias da cidade a distribuir a refeição para os mesmos, à tardinha até ao princípio da noite. Conheço alguns lugares onde eles pousam o corpo, procuram o sono em si para dormir e com o sonho de algum dia conviver e reviver com a família.

Há muitos moradores de rua na cidade. Parece que normalizamos a situação e hoje ninguém olha para aquilo com indignação. Não há uma gota de espanto, estamos preocupados com os nossos assuntos e nunca com os problemas dos outros, claro, também normalizamos isso. Este é um assunto que quebra à dureza das minhas forças, fico fraco quando penso nos moradores de rua. Já que não é possível mudar o mundo, ao menos, o mundo pode mudar os homens.

 MA: Qual é o horizonte da iniciativa de género?

JM: Vai depender do que poderá suceder. O lugar deles é na família e o que mais seria necessário e transformador é devolvê-los com amor ao lugar de convivência familiar.

 MA:Jaime quem foi seu mentor na escrita? 

JM: A leitura é o grande mentor do meu ainda curto percurso literário. Desde o momento que começo a ler livros, conheci jovens com este vício, partilhamos obras, leituras, conversamos sobre o assunto, sinto mudança em mim e percebo que a leitura aliena-nos a um espaço de distinção. A partir deste exercício participamos ou migramos para outro país que é, o da criatividade, beleza, de loucura, do amor e viramos residentes deste lugar que a leitura apresenta-nos. É uma região com mais liberdade, com mais paz e somos felizes.

MA: Quando ouve "Revista Portuguesa Incomunicabilidade" o quê lhe vem em mente?

JM: A Revista Portuguesa Incomunicabilidade foi onde pude publicar alguns textos inéditos escritos este ano a partir da poeta Hirondina Joshua. Percebo que nela se faz uma seleção rigorosa de textos de autores que escrevem em língua portuguesa. Fiquei satisfeito em saber que serei lido no meu país e além fronteiras pelos falantes do português. Tenho publicado meus escritos em espaços virtuais, e dedico-me a expandir fora do país. Este ano tive muitos poemas traduzidos para espanhol e publicados em campos literários, como México. E tive oportunidade de publicar na Argentina, a partir de antologia, textos traduzidos na mesma língua. 

Agora trabalho com Rodrigo Arreyes, um brasileiro radicado na Argentina que é escritor e pesquisador de literaturas africanas em língua portuguesa e traduziu meus trabalhos, depois os divulgou no país em que reside. A editora Fernando Leite Couto também tem feito excelente trabalho na divulgação do meu livro.

MA: Como escritor, como tem sido a interação com os outros escritores do estrangeiro?

JM: Mantenho um contacto forte com escritores. Alguns escritores, como o caso de Airton Sousa, Gigio Ferreira, Samuel Costa, Cláudia Gonsalves, os dois primeiros têm livros que tive a oportunidade de elaborar os seus prefácios; os três são braseiros, existem outros no mesmo país. Em Portugal tem a poetisa Luísa Demétrio, o poeta Breve Leonardo, a escritora Manuela Gonzaga. Com esta última desenvolvemos uma amizade mais sólida. Trabalhei com o Carlos Saramago que é um artista plástico. Ele é um surrealista do raio, tem quadros que levantam a atenção e ligam as luzes do nosso espanto. Em Angola está o poeta e ensaísta, Hélder Simbad, o poeta Zola, dentre outros.  Na Argentina temos o Rodrigo Arreyes conforme citei, Martina... No México o poeta e biólogo Arturo..., etc.

MA: Quais são as temáticas que predominam nos seus textos?

JM: Quando escrevo não penso em temáticas, dou às palavras a liberdade de compreender-me. Não há uma intenção objectiva ao escrever um poema, a ideia é criar o mundo. A temática é encontrada posteriormente, costumo dizer que a semente explode dentro da terra e não sabe que será árvore. Uma vez um jovem leitor disse-me que gostou do meu livro pelo facto de eu unir o homem com a natureza, de eu não fazer a diferença entre o homem e natureza. Quando escrevi "As Idades do Vento" não tive essa intenção. Gosto da forma como as pessoas interpretam os meus poemas. Porque cada um compreende segundo suas experiências. Por isso crítico os professores que julgam que existe uma verdade absoluta num poema, tal verdade é aquela que eles construíram. Isso tem acontecido muito em estudos de análise textual.

MA: O livro "As idades do vento", como chegou a contá-las? Uma vez que só sentimos o seu manifestar na atmosfera!

JM: Conseguimos observar o vento com os olhos da imaginação. À medida que uma árvore começa a manifestar movimentos através das folhas, percebemos que o vento está ali a comandar a dança das folhas. A nossa imaginação tem olhos que observam tudo que acontece. "As idades do vento" é um título figurado. Tento sempre não desvendar o porquê escolhi titular assim. Faço questão de deixar o leitor decifrar o conteúdo do livro e trazer a sua compreensão. No fundo, o vento é como Homem calmo, sereno, quando pode fica furioso e devastador. Meu papel é de criar mundos com palavras...

MA: Gostaria que deixasse nomes de alguns escritores que servem de cunho literário em Moçambique!

JM: Esta é uma questão comprometedora, a qual corre-se sempre o risco de não se mencionar alguns. Contudo, na nossa literatura temos vários nomes sonantes e notáveis de vários escritores que alimentaram nossa adolescência com bons livros, representaram muito bem nosso país e foram reconhecidos. É exemplo do escritor José Craveirinha, Mia Couto (vencedor do Prémio Camões). Ungulani Ba Ka Khosa, que é um nome de dimensão inquestionável, João Paulo Borges Coelho, Paulina Chiziane, Eduardo White, Armando Artur, Marcelo Panguana, Juvenal Bucuana, Pedro Chissano, Suleimane Cassamo, são vários.

Na geração actual, encontramos Álvaro Fausto Taruma, Nelson Lineu, Japone Arijuane, Amosse Mucavel, Eduardo Quive, Mauro Brito, Melita Matsinhe, Armindo Noma's, Pedro Pereira Lopes, Oscar, Macvildo Bonde, Dany Wambire, Lino Mukuruza, são vários nomes. 

Tenho recebido solicitações de amizade de jovens que leram o meu livro, querendo uma opnião sobre o que eles escrevem e isso me deixa espantado, tenho um percurso curto e falo para eles isso. Tenho conhecido pessoas muito interessantes que escrevem e gostam de ler. Acontecimentos dessa natureza são marcantes para mim, pois vou aprendendo, descobrindo-me cada vez mais em cada comentário que dou. Todavia, fico perplexo, porque buscar experiência ou orientação em quem também está a aprender é, de facto, espantoso.

MA: "A leitura abre horizontes na escrita" cito seus dizeres de 2014, no já extinto jornal Sábado. Como os novos talentos têm se destacado na literatura moçambicana na actualidade, sobretudo com mensagens combativas?

JM: Para mim, talento nunca é novo, quando nós nascemos e crescemos temos uma sensibilidade para exercer uma acção, então temos a obrigação de descobrir cedo, o fogo dentro de nós, para podermos aperfeiçoá-lo. Eu acredito nessa força interior, essa tempestade, o sonho que nos dá luzes para viver. Temos de ler os fenómenos naturais da nossa época, o vulcão Álvaro Fausto Taruma, o sismo Hirondina Joshua, o tsunami Bonde, os ciclones poéticos de Nelson Lineu. O poeta Sérgio Raimundo - Militar, um exímio cronista que desperta e reacende os sonhos adormecidos com o fósforo das palavras, entre outros que já fiz referência. Menciono esses nomes, não como um juiz, faço-o porque li e leio as suas obras e textos avulsos. Percebo a ligação espiritual que temos. Não é propositado, como disse, é um fenómeno natural.

Essa frase, sobre a leitura, foi dita nesse ano e eu quase era morador da biblioteca Camões. Os bibliotecários do Camões conhecem o meu rosto. Frequentava a biblioteca e ficava lá até a velhice do dia. A leitura é, sem dúvidas, o motor, a máquina e o sol da escrita.

MA: Como olha para o desidrato de algumas conquistas alcançadas pelo país, como caso da paz?

JM: A paz é um sonho. Somos hoje pescadores no alto mar à procura do anzol perdido na intimidade das águas, não respeitamos o outro enquanto nós mesmos, perdemos o amor. Um mundo sem amor não é mundo, é uma ruína. Eu amo a poesia porque ela cria paz.

MA: Como delimita "As margens da memória", um dos seus escritos? E partilhe umas memórias que guarda ao longo da carreira profissional que sempre estão presentes no seu quotidiano e que te servem de alicerce!

 JM: A cada dia redescubro-me. Não escrevo apenas poesia. Tenho um grilo por memórias. Uma vez li o livro "Memorial do Inferno" do escritor brasileiro Valdeck de Jesus. Outra vez, mergulhei na narrativa "Recados da Alma" de Bento Baloi, é um romance histórico incrível, e propus-me a viajar pelo mar memorial "Moçambique para a mãe se lembrar como foi" da historiadora e escritora Manuela Gonzaga, que é um livro que trata o passado como fogo sobre as cinzas, a revelação sobre o Pais do antes que eu não vi, mas posso reviver e respirar nele através da escrita da Manuela. Ler memórias é como empurrar os dias e voltar a terra e ao céu do passado e reviver o não vivido. É uma aventura espreitar pelas janelas do presente e encontrar o passado de outro lado, com mais vida.

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