Sete poemas de Rui Nogar
Nascido em Maputo em 1932, Francisco Barreto, sob o pseudónimo de Rui Nogar assinou os seus textos. Publicou poemas em jornais como “O Brado Africano” e “Itinerário”. Desde 1964, Rui Nogar foi militante da Frelimo e posteriormente preso pela PIDE.
A seu livro de poesia "Silêncio Escancarado", foi publicado em 1982, pelo Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD), e resultou da reunião de diversos poemas do autor, muitos deles escritos no tempo em que esteve preso.
Rui Nogar, figura na lista dos autores mais ouvidos durante os primeiros e agitados anos após a independência de Moçambique, onde também encontramos nomes como José Craveirinha e Noémia de Sousa.
Nogar morreu em Lisboa, Portugal no ano de 1994.
Rui Nogar |
I
XICUEMBO
Eu bebeu suruma
dos teus ólho Ana Maria
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco
agora eu quer dormir quer comer
mas não pode mais dormir
não pode mais comer
suruma dos teus ólho Ana Maria
matou sossego no meu coração
oh matou sossego no meu coração
eu bebeu suruma oh suruma suruma
dos teus ólho Ana Maria
com meu todo vontade
com meu todo coração
e agora Ana Maria minhamor
eu não pode mais viver
eu não pode mais saber
que meu Ana Maria minhamor
é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
todo gente todo gente
menos meu minhamor.
II
Poema do beber no antigamente
Poema do beber no antigamente
dobro a esquina da memória
a mais próxima dos amigos de então
e ali fico
sob a luz que no poste
me derrama em mil sombras
que uma a uma reconheço
o que fui o que sou
o que um dia quiseram que eu fosse
mas não fui
o que a esquina da memória dobrou
e no poste sob a luz se inspirou
sou eu não sou
na dialéctica da vida
fui aquele que nunca foi
sou aquele que sempre será
assim
a beber no antigamente
ficou-me a sede
do eternamente
III
Da fruição do silêncio
Tratávamos o silêncio por tu
Dormíamos na mesma cela
Acordávamos do mesmo sono
Cada sílaba audível
Completamente nua
Feria dum segundo sénticfe.
O palato hipertenso
Da fria cela dezanove
Farrapos de ambiguidade
Pendiam pelas arestas
Das mais afoitas vogais
Ninguém pressentia
No gume acerado
Da quase indiferença
Que o silêncio aparentava
O perfeito sincronismo
Das sílabas dispersas
Pêlos tímpanos de cada um
Nada sabíamos de nós próprios
Além da angústia lacerante
Coagulando-nos um a um
Nos limites da expectativa
E no écran memorial
Milhões de imagens se degladiando
Era o silêncio devorando o silêncio
Era o silêncio copulando o silêncio
Era o silêncio assassinando o silêncio
Era o silêncio ressuscitando o silêncio
Oh o silêncio o silêncio
Maldito silêncio colonial
Fuzilando-nos um a um
Contra as paredes da solidão
Oh o silêncio o silêncio
Maldito silêncio imperial
Sepultando-nos um a um
Sob os escombros de Portugal
IV
De antes que expirassem os moribundos
As balas doem companheiros
Não a dor física
Do chumbo percutido
Que o ódio calibrou
No almofadado sossego
Dum gabinete qualquer
Não
Não a presença agónica
Dessa infalível certeza
Que irredutível se insinua
Nas fracções de segundo
Que os séculos devoram
As balas doem sim
O tempo que nos faltou
Para salvar os companheiros
Nossos velhos companheiros
De novas humilhações
Novas rotas de cacau
Cacau oiro e marfim
Novos escravos a leiloar
Nos areópagos da hipocrisia
Novos deuses crucificados
Na subversão das micaias
Que a nossa África abortou
Oh as balas doem sim irmãos
As balas doem
Obra de Gilberto Muzilene |
V
Elegia a mamana Isabel
Os jornais o disseram
morreu António Caetano
velhísisimo velho colono.
Lutou por Moçambique
no tempo do Gungunhana.
Lutou por Portugal
durante a Grande Guerra.
Lutou e venceu.
Só agora foi vencido: morreu.
Os jornais o disseram
mas eu sei ah! dolorosamente eu sei
quem morreu não foi ele
foi maman Isabel
quarente e dois anos à sombra
da modesta reforma
do velhíssimo velho colono
esboroaram-se naquele dia
quarenta e dois anos em que foram dois
dormindo comendo esperando
na frágil e velha cabana
do velhíssimo e velho colono
senhor António Caetano
quarenta e dois anos
de ajuda carinho compreensão
quarenta e dois anos
de luta desespero resignação
quarenta e dois anos
ah! quarenta e dois anos se foram
quando morreu António Caetano
velhíssimo velho colono.
VI
Nova dimensão
Esta borboleta
Que volitando vai
De cama em cama grade a grade
De não-penses-mais
A um-dia-hás-de-sair
Não é uma borboleta vulgar
É sim uma borboleta
Borboleta ainda
Que um homem nesta prisão
Jurou libertar um dia
Para um voo universal
Do ciclo deste poema
Nas praças desta nação
É uma borboleta sim
Que ela aprendeu a amar
Em cada nova tentativa
De profundas metamorfoses
Sim
Borboleta política
Casulada seis meses
Na cela número três
Na Penitenciária Industrial
Da Colónia de Moçambique…
VII
Faltou Jesus nessa noite agoirenta
Embora as iguarias e demais apóstolos
Sem os trinta dinheiros e o beijo fatal
ninguém se atreveu a tocar no pão
Não se podia alimentar a lenda
sem as pupilas incandescentes
do tal judas o traidor
Judas bode expiatório
da sacrossanta impunidade
Judas
pólo de irrevogável inclemência
do ideário cristalizado
Judas será Judas
Quer ele queira quer não
e a essência das coisas dogmatizadas
deve aspergir sobre o medo inteiro
dos que aprenderam a soletrar assim
E há depois também as conveniências
dos que pintam
dos que vendem
dos que sobretudo compram
últimas ceias pelo mundo fora
Ah Judas traiu mais uma vez
eis o que sobra na mesa posta
não haverá ceia por esta noite
e Cristo apesar de Cristo e milagreiro
passará fome como um simples mortal
Como um desses milhões de famintos
que dão de comer a quem não tem fome
E assim chagados
ámen para todos os pacientes
Porque nós dizendo não
alimentaremos a revolução
Sem comentários: