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Seis poemas de Fernando Leite Couto

Jornalista, poeta, editor e tradutor, Fernando Leite Couto nasceu em Rio Tinto, arredores na cidade do Porto, em Portugal, à 16 de abril de 1924.
Fernando Couto referiu-se a si próprio como "jornalista, e nunca escritor". Apesar desta afirmação de Couto, o seu legado vai além do jornalismo, tendo sido um dos responsáveis da Editora Ndjira e das suas mãos muitas obras poéticas foram escritas.
A sua produção jornalística marcou a imprensa escrita, onde assinava muitos dos seus trabalhos com o pseudónimo Pai Fernando.
Antes de 1971, ano de edição da obra "Feições para um Retrato", Couto publicara, "Poemas Junto à Fronteira" (1959), "Jangada de Inconformismo" (1962) e "O Amor Diurno" (1962).
Fernando Leite Couto,  faleceu em Maputo, à 10 de janeiro de 2013. E deixou uma vasta lista de obras publicadas e contribuições valiosas no jornalismo.

 Obras poéticas publicadas:
Poemas junto à fronteira. Beira: Edição do autor, 1959.
Jangada de inconformismo. (Colecção "Poetas de Moçambique). Beira: 1962.
O amor diurno. (ilustrações José Pádua). Beira: Edição do autor, 1962.
Feições para um retrato. Beira: Edição ATCM, 1971.
Monódia. Maputo: Edição AMOLP, 1987.
Os olhos deslumbrados. Maputo: Editorial Ndjira, 2001.
Rumor de água - Antologia Poética de Fernando Couto. (Organização Ana Mafalda Leite). reúne todos os títulos anteriormente publicados, assim como alguns inéditos. Lisboa/Portugal: Instituto Camões. Maputo/Moçambique: Editorial Ndjira, 2007; 2011.
Vivências moçambicanas (crónicas).  Maputo: Editorial Ndjira, 2008.
Uma voz cheia de vozes. (prefácio Luís Carlos Patraquim). Maputo: Editorial Ndjira, 2015.

Percurso no jornalismo:
Tempo inteiro
 O Século - Lisboa
 Notícias - Beira e Maputo
 O Comércio do Porto - Porto

Com colaborador:
Notícias da Beira - Beira
 Diário de Moçambique - Beira
 Notícias - Delegação da Beira
 Europeu - Lisboa
 Paralelo 20 - Beira
 Lamego Hoje - Lamego
 Savana - Maputo
 Domingo - Maputo

Com correspondente:
Jornal de Notícias- em Maputo e na área do Douro-Sul
 O Comércio do Porto- em Maputo

Na Rádio:
Aero-Clube da Beira
Rádio - Clube de Moçambique (Lourenço Marques)
Rádio Moçambique - Maputo


Fernando Leite Couto

I
Manifesto

Poesia não te peço trigo
pois sei que não és seara
e nem ao menos és terra.
Quero-te só cotovia
no espesso dos trigais
e canto da madrugada.
Não podes servir de pão
a quem outro não tiver.
Podes uivar e chorar
ser o grito de esfaimados
bandeira de barricadas
cólera das nossas veias
mas não és terra ou seara
Nem balas nem espingardas.
Quero-te só cotovia
Íntima voz do meu sangue.


II
O amor diurno

Em teu sereno rosto
se ergueu o vento
querida
uma leve crispação
corre a sua linha de água
em tuas feições ondulando
querida

Teus olhos se fecharam
querida
lagos sobmersos
pejados de trevas e desejos
de prazer e dor
ó doce querida

Mar nocturno e agitado
e sua audível presença
querida
um grito surdo
túmido e lento agoniza
em tua garganta opressa
ó doce querida

Tuas mãos esguias
minha querida
asas transparentes e brancas
de aves aquáticas
um vento de loucura
as possui e agita
desnorteados barcos
navegando às cegas no meu corpo
minha querida

Em teu sereno rosto
agora apaziguado
o vento torna a ser brisa
querida
com a quietude das manhãs de verão
e a fadiga
já sobre a areia
depois do naufrágio
ó doce muito doce querida

III
Praia do savane

Tu apenas tu e rodeando-te
a imensidão do mar
e a savana imensa
e o céu abrindo e fechando
todo o horizonte à sua volta.

O bramido oceânico
e o fundo silêncio da savana.
E a solidão a solidão
e as aves marinhas
confirmando a solidão ...

Livre te sentes é verdade
mas também perdido
e inútil esta liberdade
Adão que és agora ínfimo
desolado e inquieto
contemplando o mar perplexo
contemplando-o como se as ondas
te pudessem decifrar o mistério
desta absurda criação
de deserto de mar e de terra
de silêncio de vento e de aves ...

IV
Paisagem africana

Em chamas de amarelo e rubro íntimos
inquietas deliram as flores de acácia

fofas e tépidas as dunas impudentes
imitam feminis curvas em consentimento

da terra solta-se o hálito escladantes
de sequisoas bocas em beijo interrompido

Verdes-escuras as folhas dos arvoredos
turvas pesam como um desejo insatisfeito

denas as florestas odorantes a húmus
respiram o ácido cheiro do suor de cópula

crestado o capim estremece compacto
como a epiderme ocorrida por um frémito

brutais os rios rasgam a carne das planícies
como soldados invasores às filhas dos vencidos

e à brutal excitação de um sol desumano

a terra de África abre a flor de duas pétalas rosáceas

V
Passagem da fronteira
Ou exortação a Hamlet

Alto vai o cheiro a podre
no reino da Dinamarca.
Mataram o velho rei
e é perdido o tempo de carpir.
Ei-la urgente toda imperiosa
a hora terrível da decisão.
E nem sequer se pode pensar
no aliciante do não-ser:
não faz ninho a cobardia
nos jovens corações.
Com a lucidez de quem inteiro avista
o escabroso caminho além,
afastada por agora a dúvida,
vamos, Hamlet, para a decisão de ser
afrontar os riscos.
E o resto não será silêncio.

VI
Quero-te poesia

O rumor audível
de um fio de água
deslizando breve.
A leve carícia
aflorando o rosto
com pudor de ternura.
A melancolia do adeus
inevitável e definitivo.
O bramido da cólera
dos ofendidos e humilhados
com vigor do vento
nos altos montes
ou tão só o choro silencioso.



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