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Seis poemas de Eduardo White

Autor de vários livros de poesia como: Amar sobre o Índico (1984), Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (Caminho, 1992), Janela para Oriente (Caminho, 1999) ou O Manual das Mãos (Campo das Letras, 2004).

Em 2001, Eduardo White foi considerado a figura literária do ano em Moçambique, e três anos depois recebeu o Prémio José Craveirinha, atribuído pela AEMO ao seu livro O Manual das Mãos. Em 1992, já recebera o Prémio Nacional de Poesia por Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave. Em 2013 venceu o Prémio Literário Glória de Sant’Anna.

Eduardo Costley-White nasceu a 21 de Novembro de 1963 em Quelimane, de mãe portuguesa e pai inglês. É um dos poetas ligados à fundação da revista bimestral Charrua, da Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO), que em meados dos anos 80 contribuiu para renovar a literatura do país.

Além de poesia, publicou também novelas, como As Falas do Escorpião (2002), e outros textos em prosa. Entre os seus livros mais recentes incluem-se O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004), Até Amanhã Coração (2007), Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva (2009), Nudos (2011), uma antologia da sua obra poética, O Libreto da Miséria (2012), A Mecânica Lunar e A Escrita Desassossegada (2012) e O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados, o seu último livro.

No concerto de comemoração dos 35 anos de carreira de Rui Veloso, realizado a 6 de novembro de 2015, o músico estreou uma canção chamada "Do Meu País" com letra do poeta moçambicano Eduardo Costly-White.
Eduardo White veio a falecer em Agosto de 2014, com apenas 50 anos de idade.

Eduardo White
I
PAÍS DE MIM

O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua


Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.


II
POEMAS DA CIÊNCIA DE VOAR

Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."

...

Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.


III
POEMA DA PERGUNTAÇÃO

Não somos todos, os envergonhados, os verdadeiros culpados?

Não somos nós, os indignados, os verdadeiros carrascos?

O que antes e agora julgamos, não foi apenas uma pequena evidência? O que nós prendemos não foi a mão obscura de uma consciência? E mesmo o que matamos, não foi tão somente uma ínfima parte da verdade?

E procuramos grades? E procuramos muros altos e seguros? E procuramos homens obtusos para que os possamos vigiar? E procuramos armas para os tornarmos intransponíveis? De nada nos valerá, de nada nos adiantará. Não há ferro, nem betão, nem servilismo nenhum que nos possam salvar da luz da verdade.

Uma mentira não tem sempre sede de liberdade? Uma mentira não é a cela da verdade? E quantas vezes a pretendemos prender? E com quantas grades a desejamos ocultar? E com quantas mãos a ameaçamos estrangular?

Não vale a pena. Desistamos. Em nenhum maciço de betão podemos esconder o que a nossa consciência sabe. Em nenhuma anedota, em nenhum boato, em nenhuma suposição, em nenhuma imparcialidade e em nenhum juiz e em nenhum desmentido nos jornais e em nenhum país. Nem de nós, nem dos outros.

Somos todos nós os verdadeiros culpados, são nossos os muros e as grandes onde escondemos a verdade. E deles ninguém se evadiu, somos todos nós os verdadeiros evadidos.


IV
A PALAVRA

A palavra renova-se no poema.
Ganha cor,
ganha corpo,
ganha mensagem.

A palavra no poema não é estática,
pois, inteira e nua se assume
no perfeito,
no perpétuo movimento
da incógnita que a adoça.

A palavra madura é espectáculo.
Canta.
Vive.
E respira. Para tudo isso
basta
uma mão inteligente que a trabalhe,
lhe dê a dimensão do necessário
e do sentido
e lhe amaine sobre o dorso
o animal que nela dorme destemido.

A palavra é ave
migratória,
é cabo de enxada,
é fuzil, é torno de operário,
a palavra é ferida que sangra,
é navalha que mata,
é sonho que se dissipa,
visão de vidente.

A palavra é assim tantas vezes
dia claro
sinal de paisagem
e por isso é que à palavra se dá,
inteiramente,
um bom poeta
com os seus sonhos,
com os seus fantasmas,
com os seus medos
e as suas coragens,
porque é na palavra que muitas vezes está,
perdido ou escondido,
o outro homem que no poeta reside.


V
HÁ VEZES EM QUE NEM É A MORTE QUE SE TEME

Há vezes em que nem é a morte que se teme,
o seu sossego de cinza,
a sua solidão escura,
mas como se morre.

Quando morrer
quero fazê-lo sem rumor algum,
sem ninguém que me chore
ou a quem doa.

E queria a morte uma ave,
nocturna ave
sigilosamente partindo
para outro tempo.

Para morrer, fá-lo-ia
em total silêncio,
severo
e lúcido.


VI
O QUE VOCÊS NÃO SABEM E NEM IMAGINAM

Vocês não sabem

Mas todas as manhãs me preparo

Para ser, de novo, aquele homem.

Arrumo as aflições, as carências,

As poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,

O vinagre para as mágoas

E o cansaço que usarei

Mais para o fim da tarde.


À hora do costume,

Estou no meu respeitoso emprego:

O de Secretário de Informação e de Relações Públicas.

Aturo pacientemente os colegas,

Felizes em seus ostentosos cargos,

Em suas mesas repletas de ofícios,

Os ares importantes dos chefes

Meticulosamente empacotados em seus fatos,

A lenta e indiferente preguiça do tempo.


Todas as manhãs tudo se repete.

O poeta Eduardo White se despede de mim

À porta de casa,

Agradece-me o esforço que é mantê-lo

Alimentado, vestido e bebido

(ele sem mover palha)

Me lembra o pão que devo trazer,

Os rebuçados para prender o Sandro,

O sorriso luzidio e feliz para a Olga,

E alguma disposição da que me reste

Para os amigos que, mais logo,

Possam eventualmente aparecer.


Depois, ao fim da tarde,

Já com as obrigações cumpridas,

Rumo a casa.

À porta me esperam

A mulher, o filho e o poeta.

A todos cumprimentos de igual modo.

Um largo sorriso no rosto,

Um expresso cansaço nos olhos,

Para que de mim se apiedem

E se esmerem no respeito,

E aquele costumeiro morro de fome.


Então à mesa, religiosamente comemos os quatro

O jantar de três

(que o poeta inconsta

Na ficha do agregado).


Fingidamente satisfeito ensaio

Um largo bocejo

E do homem me dispo.

Chamo pela Olga para que o pendure,

Junto ao resto da roupa,

Com aquele jeito que só ela tem

De o encabidar sem o amarrotar.


O poeta, visto-o depois

E é com ele que amo

Escrevo versos

E faço filhos


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