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O bairro às oito da noite

Mário Teixeira
Escrito por: Mário Teixeira

À entrada, por uma das ruas, do bairro, uma voz destemida furta-me a atenção ao enunciar a frase: “Os russos não se metem com qualquer raça”. Deixa-me boquiaberto e tímido de seguir a marcha. Esforço-me em entender o sentido mais provável que a rapariga dá ao verbo “meter (-se)”.
Entretanto, custa-me encontrar significado di-ferente do fornecido pelo repertório linguístico do Português, em que “me-ter” é, entrementes, equivalente a “pôr (algo) dentro (de outro) ” e “introduzir (alguma coisa na outra)”.
Portanto, permanece a questão: a que “meter (-se) com pessoas de qualquer raça” que o russo não o faz a voz se refere, visto que a Rússia coopera com vários países de África, inclusive o nosso, cooperação que implica a estadia de russos nas terras predominantemente habitadas por negros, sendo, com efeito, quase impossível que o russo e pessoas de outra, se preferirmos, qualquer raça, não interajam? Aliás, se a noção de raça não se confunde, na concepção da rapariga, com a de nacionalidade.
Adiante, as pessoas povoam as ruas aos pares e aos grupos, numa clara diferença de idades, tamanhos e sexo. As barracas permanecem aber-tas e os coolman das senhoras que desenrascam a vida enfileiram-se. A febre das remitentes garrafinhas e garrafas de bebidas diversas garante a noite dos “bairrenses” à mistura com os alheios a zona. As apare-lhagens bombardeiam os ouvidos, soltando engenhocas em nome da música. Os encharcados nas bebidas replicam-nas. Cães, gatos, répteis e insectos também vagueiam sem temer o fumo à mescla que paira pelo ar. Num tempo a fumaça cheira a tabaco, no outro a “mbangi” e a fritos ou grelhados. Nas improvisadas casas de pasto, as pastoras comer-cializam salgados salpicados com piri-piri e limão, vendem rebuçados, pão colorido, bajias, biscoitos e outras especialidades de fabrico doméstico. Importa-me saber de um ancião isolado da maioria se há alguma data ou comemoração especial do bairro àquelas horas.
As crianças também afluem ao espaço, umas traçam o quadro de jogos vários adequados ao subúrbio, outras, cujas idades me permitem adivinhar serem aparentemente atrevidas, combinam brincar às es-condidas. Estranho a escolha, uma vez que estão na rua. É que a mesma não tem esconderijos, apesar de ter sucessivos becos escuros. Será que estas crianças não deviam estar nas casas a estudar, se não o fazem, pelo menos descansando? Interrogo-me. Aliás, a pergunta pode ser absurda, uma vez que os pais lhes assistem fazendo as suas.Espanta-me vê-las tão enérgicas, correndo inocente-mente e destemidas por todos os lugares.Talvez se rissem de mim se soubessem quão temo a noite.
As valetas carregavam os ex-crementos dos utentes em alusão, enquanto os figurantes escondidos nos quintais despejavam-nos água putrefacta oriunda de várias fontes. Surpreendentemente, conhecia o Bairro diferente daquele em que se ergueram figuras cujo exemplo de vida e obra é referência obrigató-ria, a História do País que vos diga. Diante deste festival sem adjectiva-ção possível, porém pejorativo, em pleno meio de semana, que bairro e “bairenses” se podem esperar nos próximos tempos?

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