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Sete Poemas de Rui Knopfli

Se fosse vivo o poeta moçambicano, Rui Knopfli completaria neste ano de 2022, 90 anos. Ele nasceu na província de Inhambane em 1932,  e faleceu em Lisboa a  25 Dezembro 1997, aos 65 anos de idade.

Rui Knopfli

Rui Knopfli viveu em Moçambique até aos 43 anos, tendo colaborado em diversos jornais e co-dirigido, com Eugénio Lisboa, os suplementos literários do semanário A Voz de Moçambique e do diário A Tribuna. O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962) e Máquina de Areia (1964) foram os seus primeiros livros, mas é Mangas Verdes com Sal o seu livro da maturidade enquanto poeta. Nele escreve: «Eu trabalho, dura e dificilmente, / a madeira rija dos meus versos, / sílaba a sílaba, palavra a palavra», verdadeiro testemunho do despojamento e da precisão que caracteriza o seu estilo.

Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas, assumindo-se antes como continuadora da tradição lírica do Ocidente. Camões, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a poética de Knopfli. Isto apesar de, por ter nascido em plena savana de Moçambique, muita da sua imagética remeter para paragens africanas. A concisão e o cuidado formal de que se revestem os seus poemas refletem um sentir contido e desencantado, perante uma realidade muitas vezes altamente agressiva.

Knopfli olhava as correntes literárias em voga nas décadas de 60 com distanciamento e até ironia. Apesar de ter experimentado escrever poemas concretistas, foi sobre um estilo de depuramento clássico e formal que sempre se debruçou com maior interesse. Por outro lado, é frequentemente classificado como poeta barroco, contribuindo para tal não só o desenvolvimento de temas como o tempo e o desengano, como o próprio uso da linguagem rigorosa com que talha os seus versos. Daí a sua independência e originalidade, daí a dificuldade em integrá-lo nas correntes literárias.

O desencanto do poeta não soa a revolta, antes a uma passividade indiferente. As imagens podem ser violentas ou ameaçadoras, mas isso acontece quase que subliminarmente, já que o que prevalece é a serenidade das coisas, bem harmonizada com um estilo sóbrio, revelador de algo que está para além da dor.

Em 1975 teve que partir para Londres, onde em 1982 assumiu o cargo de conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal. Rui Knopfli, que desde sempre pautara a sua poesia por uma forte incidência urbana, onde o artificial se sobrepunha à natureza, vê-se agora mergulhado no mais intenso cosmopolitismo, facto esse que, em vez de se harmonizar com o seu sentir, antes lhe intensifica o sentimento de exílio e, consequentemente, de desolação. Daí que, na senda de outros poetas de língua portuguesa, confesse, em 1978, no livro O Escriba Acocorado: «pátria é só a língua em que me digo».

A sua carreira literária prosseguiu em 1982 com a edição coligida de toda a sua poesia, reunida no livro Memória Consentida - Vinte Anos de Poesia, e O Corpo de Atena, de 1984, para além da edição, conjuntamente com Grabato Dias, dos cadernos de poesia Calibán.


I

NATURALIDADE 


Europeu, me dizem.

Eivam-me de literatura e doutrina

européias

e europeu me chamam.


Não sei se o que escrevo tem raiz de algum

pensamento europeu.

E provável... Não. E certo,

mas africano sou.

Pulsa-me o coração ao ritmo dolente

desta luz e deste quebranto.

Trago no sangue uma amplidão

de coordenadas geográficas e mar Indico.

Rosas não me dizem nada,

caso-me mais à agrura das micaias

e ao silêncio longo e roxo das tardes

com gritos de aves estranhas.


Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.

Mas dentro de mim há savanas de aridez

e planuras sem fim

com longos rios langues e sinuosos,

uma fita de fumo vertical,

um negro e uma viola estalando.


II

Princípio do dia


Rompe-me o sono um latir de cães

na madrugada. Acordo na antemanhã

de gritos desconexos e sacudo

de mim os restos da noite

e a cinza dos cigarros fumados

na véspera.

Digo adeus à noite sem saudade,

digo bom-dia ao novo dia.

Na mesa o retrato ganha contorno,

digo-lhe bom-dia

e sei que intimamente ele responde.


 Saio para a rua

e vou dizendo bom-dia em surdina

às coisas e pessoas por que passo.

No escritório digo bom-dia.

Dizem-me bom-dia como quem fecha

uma janela sobre o nevoeiro,

palavras ditas com a epiderme,

som dissonante, opaco, pesado muro

entre o sentir e o falar.


 E bom dia já não é mais a ponte

que eu experimentei levantar.

Calado,

sento-me à secretária, soturno, desencantado.

(Amanhã volto a experimentar).


 

III

 Velho Colono


Sentado no banco cinzento

entre as alamedas sombreadas do parque.

Ali sentado só, àquela hora da tardinha,

ele e o tempo. O passado certamente,

que o futuro causa arrepios de inquietação.

Pois se tem o ar de ser já tão curto,

o futuro. Sós, ele e o passado,

os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo,

certamente. E, nas sombras mais densas

e frescas, namorados que se beijam

e se acariciam febrilmente. E crianças

rolando na relva e rindo tontamente.


Em redor há todo o mundo e a vida.

Ali está ele, ele e o passado,

sentados os dois no banco de frio cimento.

Ele a sombra e a névoa do olhar.

Ele, a bronquite e o latejar cansado

das artérias. Em volta os beijos húmidos,

as frescas gargalhadas, tintas de Outono

próximo na folhagem e o tempo.


O tempo que cada qual, a seu modo,

vai aproveitando.


 

IV

Testamento


Se por acaso morrer durante o sono

não quero que te preocupes inutilmente.

Será apenas uma noite sucedendo-se

a outra noite interminavelmente.


 Se a doença me tolher na cama

e a morte aí me for buscar,

beija Amor, com a força de quem ama,

estes olhos cansados, no último instante.


 Se, pela triste monotonia do entardecer,

me encontrarem estendido e morto,

quero que me venhas ver

e tocar o frio e sangue do corpo.


 Se, pelo contrário, morrer na guerra

e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,

quero que saibas, Amor, quero que saibas,

pelo cérebro rebentado, pela seca veia,


 pela pólvora e pelas balas entranhadas

na dura carne gelada,

que morri sim, que não me repito,

mas que ecoo inteiro na força do meu grito.



V

Ilha dourada


 A fortaleza mergulha no mar

os cansados flancos

e sonha com impossíveis

naves moiras

Tudo mais são ruas prisioneiras

e casas velhas a mirar o tédio

As gentes calam na

voz

uma vontade antiga de lágrimas

e um riquexó de sono

desce a Travessa da "Amizade"

Em pleno dia claro

vejo-te adormecer na distância,

Ilha de Moçambique,

e faço-te estes versos

de sal e esquecimento



VI

Sem nada de meu


Dei-me inteiro. Os outros

fazem o mundo (ou crêem

que fazem) . Eu sento-me

na cancela, sem nada

de meu e tenho um sorriso

triste e uma gota

de ternura branda no olhar.

Dei-me inteiro. Sobram-me

coração, vísceras e um corpo.

Com isso vou vivendo.



VI

Posteridade


Um dia eu, que passei metade

da vida voando como passageiro,

tomarei lugar na carlinga

de um monomotor ligeiro

e subirei alto, bem alto,

até desaparecer para além

da última nuvem. Os jornais dirão:

Cansado da terra poeta

fugiu para o céu. E não

voltarei de facto. Serei lembrado

instantes por minha família,

meus amigos, alguma mulher

que amei verdadeiramente

e meus trinta leitores. Então

meu nome começará aparecendo

nas selectas e, para tédio

de mestres e meninos, far-se-ão

edições escolares de meus livros.

Nessa altura estarei esquecido.



VII

Justerini & Brooks


Este punhal de veludo,

esta fria estalactite,

esta cicuta tão lenta

e que tão profundamente

fere. Esta lâmina


líquida, doirada,

este filtro parecido ao sol,

este rarefeito odor simultâneo

ao fumo, à água, à pedra.

Este adormecer antes do sono,


só preâmbulo da vigília,

que é o gélido acordar

da imaginação para

as fronteiras dormentes

do horizonte protelado.


Este trajecto subterrâneo e húmido

pelos túneis do infortúnio,

que é o adiar moroso

da morte, no prolongar

silencioso da vida,


lágrimas da noite tornadas

pranto da madrigada,

rumor débil e distante

brandindo já no sangue

o endurecer das artérias.


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