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Cinco poemas da Noémia de Sousa

Noémia de Sousa nasceu em 1926, em  Maputo (Catembe). Ela exerceu grande influência na poesia moçambicana, por isso ficou conhecida  como a “Mãe dos poetas moçambicanos”. A sua obra poética, representa a resistência da mulher africana e luta do povo moçambicano pela liberdade. Noémia de Sousa publicava seus poemas em jornais como o Brado Africano, apesar de ter influenciado várias gerações de poetas, Noémia apenas  publicou um livro, com o título  "Sangue negro", composto por 49 poemas, escritos entre 1948 e 1951. Obra editada em 2001 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). "Sangue Negro" conheceu duas novas reedições nomeadamente: 2011, com a editora Marimbique, em 2016 a obra teve uma edição brasileira chancelada pela editora Kapulana.
Noémia de Sousa faleceu à 4 de Dezembro 2002, em Cascais, Portugal.
Noémia de Sousa 
I
AFORISMO

Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.


II
MAGAÍÇA

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando,
oh nhanisse, voltou,
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Às costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
à cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone.

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City


III
NEGRA

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE


IV
TEIAS DA MEMÓRIA

Na baça melancolia do tecto
bilros de teia bordam solidão
enquanto meigos sussurros de sombra
no brilhante mutismo do espelho
recitam estrofes de poeira.


V
TE DEUM

Opressiva
a inquietude
no carrilar dos bronzes.

Libreto
de mil cactos
em mudo refrão dos desertos.

Dobre
de sinos
em solene Te Deum
de graças pela Maria.






1 comentário:

  1. A nossa actualidade, julgo, deve se inspirar no passado e presente para o amanhã ser rico em literatura.

    #Moças das docas

    Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
    viemos do outro lado da cidade
    com nossos olhos espantados,
    nossas almas trancadas,
    nossos corpos submissos encarnados.
    De mãos ávidas e vazias
    de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
    de corações amarrados de repulsa,
    descemos atraídas pelas luzes das cidades,
    acenando convites aliciantes
    como sinais luminosos na noite.

    Viemos...
    Fugitivas dos telhados de zinco pingando de cacimba,
    do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
    do doer espáduas todo o dia vergadas
    sobre sedas de outras, exibirão,
    dos vestidos desbotados de chita,
    da certeza terrível do dia de amanhã
    retrato fiel do que se passou,
    sem uma pincelada verde forte
    falando de esperança.

    Viemos...
    E para além de tudo,
    por sobre Índicos de desesperos e revoltas fatalismos e repulsas,
    trouxemos esperança.
    Esperanva de que xituculumucumba já não virá
    nas noites infindáveis de pesadelo,
    sugar com seus lábios de velha
    nossos estômagos esfarrapados de fome.
    E viemos.
    Oh sim, viemos!
    Sob o chicote da esperança,
    nossos corpos capulanas quentes
    embrulharam com carinho marítimos nómadas doutros países,
    saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
    Nossos corpos pão e água para toda a gente.

    Viemos...
    Ai mas nossa esperança
    venda sobre nossos olhos ignorantes,
    partiu desfeita no olhar enfeitiçado do mar
    dos homens loiros e tatuados de portos distantes
    partiu no desprezo e no asco salivado
    das mulheres de aro de oiro no dedo
    partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
    substituindo as de prata,
    partiu na indiferença sombria da caderneta...
    E agora, sem desespero nem esperança,
    seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...
    E regressaremos.
    Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
    rangendo dentes de apodrecidos de tabaco e álcool,
    voltaremos aos telhados de caniço pingando de cacimba
    ao sem sabor do caril de amendoim
    e à dor do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...

    Mas não é piedade que pedemos, vida!
    Não queremos piedade
    daqueles que nos roubaram e nos mataram
    valendo-se de nossas almas ignorantes e nos corpos macios!
    Piedade não traz de volta nossas ilusõe
    de felicidade e segurança,
    não nos dará os filhos e o lar que ambicionávamos.
    Piedade não é para nós.

    Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
    para aguardar o dia luminoso que se avizinha
    quando mãos molhadas de ternura vierem
    erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
    quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
    com dignidade
    e formos novamente mulheres!

    Texto: Noémia de Sousa

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