A Mendicidade Avulsa: Entre Semáforos e Silêncios
Por: Fátima Abdin Martins (Neblina)
Todos os dias, ao acordar do céu sobre Maputo, as ruas ganham vida — ou talvez, denunciem a ausência dela. Entre carros de porte médio, pequeno e grande, erguem-se pés sedentos de esperança, mas descalços de lar. São os filhos da cidade, os filhos de ninguém, numa coreografia amarga pelas avenidas, onde a dignidade se mendiga em silêncio.
Na longa procissão das calçadas, as crianças da mendicidade avulsa vagueiam, enfileiradas como retalhos de um destino roto. A cada semáforo, uma súplica. A cada vidro fechado, um grito calado. E os semáforos da 24 de Julho e da Eduardo Mondlane já sabem de cor os ecos dessas histórias: são confessionários urbanos de pequenas almas que aprenderam a sobreviver nos interstícios do desprezo.
A cidade, essa espectadora apressada, finge não ver. Mas os olhos da infância, mesmo marejados de poeira, não mentem: são janelas para uma dor antiga que se veste de hoje.
Metáforas de abandono andam de mãos dadas com pedaços de sorrisos caídos no esquecimento. Uma maçã mordida, um pão pela metade, uma moeda lançada com pressa — são os prémios efémeros da sorte diária.
E quando chega Junho, ah, Junho! O mês das crianças! Uma hipérbole de homenagens, palcos floridos, discursos de ocasião. Como um flash de luz que ilumina por segundos um palco vazio. Porque no dia dois, no três, e nos restantes dias, o esquecimento volta a cair como uma cortina pesada.
A teoria da agulha hipodérmica, antiga mas ainda útil, fala de como as massas absorvem mensagens sem filtro. E talvez por isso, as campanhas públicas que deviam comover, já não comovem. A repetição anestesiou a empatia. Por outro lado, os líderes de opinião, aqueles que sorriem nas telas, que influenciam multidões com um gesto, uma frase, uma publicação — esses, tantas vezes, são a agulha que fura o lugar errado. Enaltecem causas momentâneas, enquanto crianças reais derretem-se ao sol das avenidas.
As figuras públicas deviam ser mais que rostos bonitos: deviam ser vozes incômodas. Devia caber-lhes o papel de sacudir consciências, não apenas partilhar brindes em datas comemorativas.
A mendicidade avulsa não pede só pão. Pede um novo pacto social. Um gesto. Um plano. Um amanhã.
Porque nenhuma criança devia ter por brinquedo o medo e por cobertor o cimento frio da cidade.
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