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Entre a Maçã e o Batuque: uma leitura crítica de “Maçã Ya Eva” de Cleyton Da Drena

Por: Xisto Fernando


No campo sonoro do Amapiano moçambicano, onde as batidas arrastadas se misturam com sintetizadores hipnóticos e vocais etéreos, Cleyton Da Drena emerge com “Maçã Ya Eva”, um tema que é tanto uma provocação simbólica como um espelho da nossa paisagem cultural contemporânea. A música, lançada em Dezembro de 2023 e já com milhões de reproduções no YouTube e nas plataformas digitais, é um marco não apenas musical, mas também social e antropológico.



A maçã não é só fruta


À primeira audição, o título evoca uma imagem bíblica: Eva e a maçã – símbolos de desejo, tentação, pecado e queda. No entanto, Cleyton não reencena o mito cristão de forma moralista, antes o subverte, colocando o feminino no centro da narrativa de liberdade, prazer e presença. Eva, aqui, não é pecadora. É dançarina, musa, energia. A maçã, símbolo proibido, é saboreada sem culpa ao som de um beat infeccioso que convida à libertação dos corpos.

No contexto social moçambicano, onde ainda se debate o papel da mulher, a sua autonomia sobre o corpo e o direito ao prazer, a música propõe uma leitura audaz: a mulher não é objecto de desejo passivo, mas protagonista do seu próprio movimento, tanto no vídeo como na letra.

Musicalmente, “Maçã Ya Eva” é uma peça exemplar do Amapiano local: batida constante, piano profundo e samples vocais que ecoam num espaço onde tradição e modernidade dialogam. A produção do beato brilha pelo minimalismo bem executado, criando uma atmosfera onde o groove se torna hipnótico. A voz de Cleyton, por sua vez, não busca virtuosismo, mas entrega — é mais instrumento de ambientação do que declamação.

O que o diferencia de outros artistas do género é a capacidade de ancorar o ritmo importado da África do Sul com referências culturais moçambicanas, seja na linguagem, seja nas danças urbanas mostradas no videoclipe. Não há aqui uma simples imitação de tendências, mas um processo de absorção e transformação: o Amapiano moçambicaniza-se.


Corpos, ruas e simbolismos visuais

O videoclip oficial, realizado por CR Boy, transforma o beat em imagem. Com coreografias marcadas por expressividade e sensualidade, o vídeo mergulha nas estéticas urbanas de Maputo: muros grafitados, becos e festas improvisadas. A rua é palco e personagem. Mais do que dançarinas, as mulheres que aparecem representam resistência ao olhar moralizante. Elas movem-se para si, e não para os outros.

A crítica poderia cair na armadilha de interpretar o videoclipe como reprodutor de estereótipos, mas seria ignorar o contexto: num país onde o corpo da mulher é ainda palco de disputa entre modernidade e conservadorismo, cada gesto de dança é também um acto de afirmação.

“Maçã Ya Eva” não é apenas uma música para se dançar — embora seja isso também. É uma proposta estética que recupera mitos ancestrais, tensiona tabus sociais e celebra o corpo como território de liberdade. Cleyton Da Drena, com seu timbre discreto e letras minimalistas, mostra que a música popular pode ser simultaneamente festa e reflexão.

Num tempo em que o debate sobre o lugar da mulher, a liberdade sexual e a identidade africana se intensifica, “Maçã Ya Eva” é uma peça sonora que pulsa entre o sagrado e o profano, entre o tambor e a tentação. E, sobretudo, entre o real e o simbólico.



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