sábado, 7 de junho de 2025

Crónica de um chapa enlatado

 Por: Xisto Fernando

Xisto Fernando 

No chapa, essa gloriosa lata ambulante de almas comprimidas, viaja-se com o corpo colado e a paciência em modo de sobrevivência. É um universo próprio, paralelo, um teatro improvisado onde cada passageiro, cobrador e motorista interpreta o seu papel com convicção digna de Oscar.
Há os passageiros distraídos, os que entram no chapa com a cabeça nas nuvens e o corpo no banco, e só quando a cidade já vai a meio é que acordam aos berros:
— Paragem, paragem, cobrador! Já passámos a minha paragem!
Como se o cobrador fosse também cartomante ou navegador de Google Maps.
Há os passageiros em crise financeira permanente, que sobem com cara de quem vai a um funeral e declaram com voz sofrida:
— Mano cobrador, só tenho 10 meticais, vou descer na Brigada.
Se o chapa estiver vazio, o cobrador faz-se de generoso. Mas se estiver cheio, responde com diplomacia bruta:
— Isso aqui não é carro de esmola, maningue!
As senhoras das trouxas, ah, essas são personagens centrais. Sobem com sacos de verdura, arroz, um bidão de cinco litros e, por vezes, uma galinha com cara de quem não aprovou a viagem. Falam, resmungam, murmuram orações, discutem o preço do tomate e ainda arranjam tempo para corrigir a roupa das outras.
Depois temos os acidentalmente democráticos, aqueles que normalmente só se movem de táxi, mas nesse dia, por obra do destino ou da carteira, apanharam chapa. Sentem-se violados quando alguém lhes encosta um braço ou, pior, um sovaco:
— Senhor, está a me tocar, há respeito!
E os analistas políticos do chapa, claro, não podem faltar. Começam tímidos e, de repente, já estão a vociferar contra a FRELIMO, o Presidente, a CNE, o tempo seco e até a falta de troco. Tudo com argumentos do tipo “eu ouvi dizer”, mas falam com tanto fervor que o chapa todo vira Assembleia da República em movimento.
Há também os briguentos crónicos, especialistas em transformar qualquer frase do cobrador num insulto pessoal. Discutem sobre o troco, o banco apertado, o tempo de espera na paragem e até sobre o volume da música. São como fogueiras secas: basta uma faísca, e pegam fogo.

Não esqueçamos os passageiros VIP, que sobem no Saul e descem no Micael. Pagam os 15 meticais como se tivessem financiado o próprio chapa e dizem, com voz de porcelana:
— Não quero queimar com sol, meu irmão.
O cobrador olha e pensa: “Se calhar pensa que isto é Yango Premium.”
Mas o elenco principal não termina aqui.
Há os pregadores ambulantes, que entram com a Bíblia numa mão e o inferno na outra. Gritam versículos em Dolby Surround e prometem salvação gratuita — excepto do calor e da má condução.
Os amantes discretos sentam-se sempre juntos, falam baixinho, e riem de tudo. São os únicos que parecem felizes ali dentro. Já os músicos frustrados cantam com os fones no ouvido, mas desafinam em voz alta. E, claro, os dorminhocos profissionais, que adormecem no instante em que sentam e acordam já na última paragem, babados e sem saber em que bairro estão.

Quanto aos cobradores, esses são uma espécie em vias de multiplicação. Temos:
O simpático, que até ajuda a senhora com a trouxa e diz “obrigado, mãezinha”.
O arrogante, que acha que os passageiros são sacos de batata empilháveis e grita:
— Quatro-quatro, lá atrás! Encosta, amigo, não estamos no Alex Bottle Store!
O intelectual da esquina, que usa óculos sem lentes, fala palavras como “déficit” e “paradigma”, mas não sabe dar troco de 100 meticais.
O filósofo de paragem, que pergunta a cada passageiro:
— A vida é andar ou ficar? Vens ou vamos?
E, claro, o entrevistador, que quer lotação, mas selectiva — como se fosse dono de uma empresa de táxi aéreo.
O cobrador entrevistador, esse não deixa ninguém subir sem uma breve triagem:
— Vais descer aonde, chefe?
Se o passageiro responde algo como "Zimpeto" ou "Museu", o cobrador fecha a porta e atira um seco:
— Estamos só a levar pessoal curto, não queremos pedras.
Para este tipo de cobrador, passageiro que fica muito tempo dentro do chapa sem descer é considerado "pedra" — e o chapa, aparentemente, não é camião de brita.

E os motoristas? Ah, esses são sacerdotes da velocidade. Uns parecem ter sido treinados pelo Schumacher, com curvas que desafiam as leis da física e da misericórdia. Outros conduzem ao ritmo do hino nacional, especialmente quando há polícia na estrada. Alguns são mudos, outros cantam alto, e há até o DJ oficial, que mete marrabenta das antigas no volume máximo e canta por cima:
— Isto sim é música, não esse vosso rap de estrangeiro!
Viajar de chapa não é apenas transporte. É uma experiência sociológica, uma aula de teatro e um exercício de paciência tudo junto. Quem nunca andou de chapa, não conhece o povo. E quem anda todos os dias, bem... já deixou de sentir o cotovelo no rim e aprendeu a rir no meio do aperto.



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