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quarta-feira, 29 de abril de 2020

A CIDADE DOS MASCARADOS

Por: António Magaia

António Magaia 
Estava prestes a romper o distanciamento social, após 4 dias de isolamento sem sair de casa, fui convocado a uma reunião profissional, que libertou-me das grades de casa. Saí da residência  bem cedo para comparecer a reunião na cidade, que agora tinha virado, cidade dos mascarados. Introduzi-me no semicolectivo, e toda gente trajada a famosa máscara, a medida era recente, aliás, ouvi algo assim:
- Senhor se não tem máscara convém descer, ninguém sobe sem máscara. Assim era privado um homem de subir o chapa, por causa da prevenção do mais famoso, e mais falado vírus  o coronavírus.  Sentei-me ao lado da janela, para desfrutar da brisa do ar, pus-me a mirar os passageiros,  e as paisagens, toda gente estava  mascarada, jovens,  velhos, senhoras, consegui ver até um bebé no colo de sua mãe ao meu lado, devidamente mascarado. Quando cheguei a cidade, apercebi-me que a nossa Maputo já tinha sido metamorfoseada, era agora a cidade dos mascarados, era a cidade onde todo mundo anda preocupado com a higiene das mãos, desinfectantes de álcool, distanciamento social etc.
As pessoas ficaram tão presas a essa rotina de prevenção que quase se esquecem de viver, é incrível como alguns compram a depressão,  matabichando, almoçando, lanchando e jantando com notícias de coronavírus nas Tvs e redes sociais. Diz se por aí, que é deveras desconfortável andar de máscara, pois doem os ouvidos, ficamos com pouco ar nas fossas nasais e por cima podemos provocar o mau hálito da boca.  Mas as piores máscaras não são as da Covid19, as piores máscaras são as que vestimos todos dias, para fugir dos nossos problemas, para fazer de contas que  Olhemos para o nosso Moçambique, quantas guerras Moçambique tem? Guerra contra a desnutrição crónica, guerra contra a malária, guerra contra fome, guerra em Cabo-Delgado, guerra contra mortalidade infantil etc. Temos tantas guerras, agora a questão é a seguinte: Poderá uma nação vencer uma só guerra estando desorientada? 
Todos dias vestimos máscaras invisíveis mais pesadas que as da Covid-19. Os jovens vestem máscaras de diversão, do álcool e das festas mas sabem que o desemprego e a habitação lhes desafia para um braço de ferro todos dias, os cobradores vestem a máscara da ignorância em muitas rotas escolhendo pelas afinidades quem deve ou não deve subir o semicolectivo, esquecendo que a enfermeira a quem recusam que entre pode ser a mesma que vai deixar a sua mãe na fila de espera do hospital por longas horas, por ter se sentido injustiçada no chapa. Os nossos deputados todos dias vestem a máscara da intolerância política, são capazes de passar 60% do tempo a insultarem-se, fazendo alusões a maldita guerra dos 16 anos que já passou, mas que eles não querem perdoar-se e deixar passar, será que seria preciso uma recolonização para os verdes lembrarem-se que os azuis são moçambicanos e vice versa? Face a esta crise, senhores deputados gostávamos de saber, qual é o plano para suprir as necessidades alimentares do país? Quantas toneladas de batata, tomate, cebola, Moçambique precisa para não depender da África do Sul e passar mal de fome? Quantos hectares de terra são necessários? Quais são os agricultores que tem a missão de produzir esses alimentos? aonde estão eles? Qual é o plano?  Saber estas questões é muito mais importante que estar actualizado acerca do percurso da Covid-19 além fronteiras. Senhores deputados, precisamos de um plano urgente para minimizar o sofrimento de Moçambique começando pela agricultura. Por fim apelo a todos para vestirmos a máscara da luta e do compromisso com o nosso Pais.  Deus abençoe Moçambique!

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Dez artistas que morreram de coronavírus

Desde a eclosão do novo coronavírus, o mundo das artes se encontra paralisado. No cinema, filmagens e estreias foram adiadas, na arena musical todos os concertos cancelados, fazendo com que os artistas busquem outras alternativas para mostrar o seu trabalho. Porém, o estrago do Covid-19 neste universo artístico vai além das paragens dos eventos, isso porque muitos artistas perderam a vida vítimas do vírus.
Nesta lista, a Massala vai apresentar dez fazedores da arte que morreram vítimas desta nova pandemia, tendo com base nas informações obtidas no portal de Notícias "g1".




 Sergio Rossi

Sérgio Rossi
Estilista italiano de sapatos de luxo, morreu aos 85 anos, no dia 2 de abril depois de ser hospitalizado com coronavírus. Rossi aprendeu sua arte com o pai que era sapateiro.


John Prine

John Prine
Músico, lenda do country americano e do folclore do país, morreu em Nashville, nos Estados Unidos, aos 73 anos, após ter sido internado por coronavírus.
Nascido no Illinois, Prine era conhecido como "o compositor dos compositores". 


Lee Konitz 

Lee Konitz
um dos mais reconhecidos saxofonistas do jazz americano, morreu vítima do covid-19, aos 92 anos, em um hospital de Nova York. 

Konitz começou sua carreira musical participando de espectáculos de orquestras, mas a carreira solo se iniciou em 1949, com o álbum "Subconscious-Lee", lançado em 1955.

 Luis Sepúlveda

Luis Sepúlveda
escritor chileno, morreu aos 70 anos, na Espanha, depois de passar um mês e meio hospital. Ele apresentou resultado positivo para a doença depois de retornar de um festival no norte de Portugal. 
Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, como História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, pelo italiano Enzo D’Alò e em versão animada, e Um velho que lia romances de amor, dirigida pelo holandês-australiano Rolf de Heer.


Manu Dibango 

Manu Dibango
Emmanuel N'Djoké Dibango, conhecido como Manu Dibango nascido em Duala, a12 de dezembro de 1933 –  foi um músico e compositor camaronês que tocou saxofone e vibrafone de jazz e afrobeat. Uma de suas canções, "New Bell", figurou na trilha sonora do jogo Grand Theft Auto IV, mais precisamente na rádio IF99. 
Dibango morreu aos 86 anos na França, ele ficou conhecido mundialmente com o sucesso de "Soul Makossa".

Vittorio Gregotti

Vittorio Gregotti
Arquiteto italiano , que projetou o estádio olímpico dos Jogos de Barcelona de 1992, aos 92 anos, morreu depois de ter sido infectado com o novo coronavírus. O arquitecto também projectou o teatro da Ópera Arcimboldi de Milão, entre muitas outras obras. Estava hospitalizado com sua esposa Mariana Mazza em Milão em morreu a 15 de Março 


Adam Schlesinger 

Adam Schlesinger
Antigo membro da banda Fountains of Wayne. O cantor e compositor também fez sucesso em uma carreira escrevendo trilhas sonoras para o cinema e para a TV - e chegou a ser indicado ao Oscar pela canção "That thing you do!", trilha do filme "The Wonders: O sonho não acabou" (1996). 


Terrence McNally

Terrence MCNally
Dramaturgo americano morreu aos 81 anos em um hospital na Flórida, nos EUA, vítima do Coronavírus. McNally ganhou quatro estatuetas do Tony, o principal do teatro americano, além de um prémio honorário pela carreira em 2019.

 Andrew Jack 

Andrew Jack
O actor inglês, que interpretou o personagem Caluan Ematt em filmes da série "Star wars", morreu aos 76 anos, em Londres. Andrew Jack actuou nos filmes "Star wars: O despertar da força", de 2015, e "Star wars: Os últimos Jedi", de 2019. 


Joe Diffie
Joe Diffie
Cantor country, morreu aos 61 anos  nos EUA, por causa do novo coronavírus. Joe Diffie ganhou um Grammy em 1998 com a faixa Same Old Train", com Marty Stuart. 















sábado, 25 de abril de 2020

Obedes Lobadias: " sou feito de tantos sonhos que mal sei qual é o meu maior sonho"

Por: Nwatshukunyane Khanyisane

Esta é o tipo de entrevista que começamos pelos sonhos e, depois viajamos pela poesia. Isso porque entrevistamos o jovem declamador, poeta, escritor e activista social Obedes Lobadias. Não estranhem a pergunta inicial, sonhos movem o mundo e Obedes Lobadias é movido de tantos sonhos, também pudera. 
Do seu currículo artístico-literário, já participou em diversas antologias na terra do "samba (Brasil), nomeadamente: " Leveza da alma" em 2014, "Entre o samba, o fado e a poesia (2015), "Em todos os ritmos da poesia (2016) e "Todos os tons da poesia" (2017). Em Camarões participou da Antologia "melhores novos poetas africanos 2016". E Em Maputo "Soletras esse verso" (2018).
Fez uma participação no filme, "pequeno escritor" do realizador Júlio Silva e foi membro fundador do movimento artístico-literário "Universos". Obedes Lobadias já realizou diversos espetáculos de poesia no âmbito do seu projecto "Quando Aconteço", e é considerado um dos melhores declamadores de poesia no país.

Obedes Lobadias

Massala Arte (MA): Qual é o teu maior sonho?


Obedes Lobadias (OL):  Antes eu tinha a resposta para essa pergunta, mas descobri que sou feito de tantos sonhos, que mal sei qual é o meu maior sonho, talvez todos, ou ter vida suficiente para os (vi)ver reais.

MA: O que acha da escrita moçambicana na actualidade?

OL: Os críticos teriam uma resposta mais bem construída e não os quero tirar o lugar,  é mal.
Não que eu não me auto-critique, ou não tenha uma opinião clínica, digamos, sobre uma e outra coisa, mas porque cada um tem a sua função. E, falar de actualidade é mesmo que falar de um rio, as vezes a gente só tem a certeza do mar ou da nascente, mas as fronteiras do próprio rio (se é que um rio tem fronteiras), digo, o leito e o afluente, nem sempre a gente sabe onde ficam, ou o contrário é o contrário. 
Confesso-me confuso, mas é que não sei aonde começa a actualidade e nem onde termina. Mas sinceramente digo, muitos de nós ainda temos muito que buscar e exercitar, somos traídos pelos aplausos e falsos elogios e sentimo-nos os tais e esquecemos que nunca se está pronto, é sempre um exercício. 

MA: Quais  são as dicas e/ou conselhos, que o Obedes dá aos néofitos poetas e declamadores moçambicanos?

OL: Que não subamos a escada pelo terceiro degrau, respeitemos cada passo. Não tenhamos medo de continuar o que já vem sendo feito, nem de começar novas coisas. Que não sejamos uma ilha e talvez nem o contrário, mas sejamos sempre a melhor coisa que podíamos ser. Mais uma vez pulei.

MA: Há uma contradição uns consideram o Lobadias Cronista e outros poeta? O Obedes além de poeta é Cronista ou é um equívoco?

OL:  Os que se contradizem é que tem os melhores fundamentos para uma resposta certa. Não sou eu que me contradigo.  Eu apenas liberto-me das palavras que me invadem, tento jogar mais água nessa fogueira que a vida vive acendendo dentro de mim, e parece-me que ela acende mais a cada gota.
Mas tudo bem! será que a poesia não pode emprestar o senso da crónica e esta por sua vez, é tão dura que não se permita ter alguma poesia? Não sei! E é proibido cruzar os genes da crónica e da poesia e deixar nascerem novos seres? Afinal, o que é poesia? O que é crónica? Não sei, eu apenas escrevo, o texto é que escolhe a sua forma, mas também acredito no contrário em dar forma ao texto quando convém.

Não sei se seria verdade, mas não seria mentira pensar que o  declamador também é poeta, o problema é ele não ser apenas poeta. Um declamador é um sujeito que se dedica à esta arte de descobrir ou dar alma, carácter e voz à palavra.  Um intérprete, um criador de possibilidades à volta de um determinado texto, um tradutor de sentimentos e  pensamentos. Um declamador prova que a palavra é um ser vivo que só não cumpre com a sua última fase: a morte. É no mínimo esta a sua função, mas há mais que se diga, eu posso acabar tautológico.

 MA: Admiras alguns declamadores moçambicanos? Se sim. Quem são?

OL:  Não vou citar nomes. Mas permita-me dizer que deixei de ouvir os declamadores, agora ouço e vivo a declamação em si. Depois é que procuro ver quem é o declamador, reconhecer ou não a sua excelência. Admiro à todos, a cada um na mais sincera medida, dentro dos conceitos, em que acredito ou não, de declamar,  mas que temos bons declamadores, isso é uma lei irrevogável, porém, volto a reiterar que nunca se está pronto, é tudo um constante exercício, muitos de nós precisamos trabalhar.
Todos os exercícios que um artista, independentemente da modalidade artística  tem,  eu tenho estado a pesquisar, estudar, criar ou recriar e aplicar, aperfeiçoar várias técnicas e maior parte delas, são resultado do que ninguém talvez dá conta.  E tenho pensando que temos declamadores de diferentes níveis e cada nível têm exercícios próprios.

 MA: Se fosse pra dar uma definição de poesia. Qual seria?

OL: Não saberia definir poesia, eu aceito cada uma que me ocorre como um conceito.

MA: Quais são os escritores moçambicanos que admira? (podes dizer alguns internacionais).

OL: É complicado falar de nomes. Tenho sim referências nacionais e internacionais, na declamação e na escrita, mas não me convém partilhar por enquanto (na vez certa partilho), algumas já devem imaginar, pois os bons são bons nem que a gente não ache.

MA: O que falta para a poesia moçambicana ser dançada?

OL: Talvez ela não precise ser dançada. Talvez. Mas por outro lado, penso que toda a chuva precisa de nuvem,  e  há toda uma cadeia de factores que possam permitir tal facto. Isso envolve à todos (todos mesmo). 
Mais do que o acesso ao livro para todos, a noção da importância da leitura, da literatura, da poesia e de todas as artes para o desenvolvimento do homem e do mundo.  Eu tive a bênção de ter pais que conhecem a preponderância da leitura, ter professores com a mesma noção, ter amigos, viver, trabalhar e vou morrer em lugares para os quais o livro é serventia da casa. Isso, se eu morrer.
 Para que a música seja dançada por todos, precisa ser ouvida por todos, precisa chegar à todos, ainda que cada um dance depois à sua maneira. Mas antes de ser ouvida por todos, precisa ser trabalhada na qualidade ideal para todos. E, entenda-se aqui o "todos", as utopias são necessárias para fazer crescer a vida, mas não é por aí. Há muito por se falar, contenho-me de derrapar ainda mais.

MA:  Como é que o Obedes trabalha neste distânciamento social, por conta da pandemia e do estado de emergência decretado pelo Governo?

OL: Entendo o significado da palavra emergência e tenho pouco que reclamar, faço valer a minha noção, mas não posso negar que as consequências tem duas faces: uma que é a minha protecção face à pandemia e é positiva, outra que é a agressão não só como artista, mas como qualquer ser humano, pois alguns direitos meus estão por ora suspensos. Então, como activista, nada mais que a difusão de informação útil e sensibilizar as pessoas a tomarem consciência. Como artista tentar oferecer conteúdos, que tentem proteger as pessoas doutra pandemia, que às sombras poderão dar cabo de muitos de nós: falo dos problemas psicológicos.

Cinco poemas da Noémia de Sousa

Noémia de Sousa nasceu em 1926, em  Maputo (Catembe). Ela exerceu grande influência na poesia moçambicana, por isso ficou conhecida  como a “Mãe dos poetas moçambicanos”. A sua obra poética, representa a resistência da mulher africana e luta do povo moçambicano pela liberdade. Noémia de Sousa publicava seus poemas em jornais como o Brado Africano, apesar de ter influenciado várias gerações de poetas, Noémia apenas  publicou um livro, com o título  "Sangue negro", composto por 49 poemas, escritos entre 1948 e 1951. Obra editada em 2001 pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). "Sangue Negro" conheceu duas novas reedições nomeadamente: 2011, com a editora Marimbique, em 2016 a obra teve uma edição brasileira chancelada pela editora Kapulana.
Noémia de Sousa faleceu à 4 de Dezembro 2002, em Cascais, Portugal.
Noémia de Sousa 
I
AFORISMO

Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.


II
MAGAÍÇA

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando,
oh nhanisse, voltou,
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Às costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
à cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone.

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City


III
NEGRA

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.

Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.

E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE


IV
TEIAS DA MEMÓRIA

Na baça melancolia do tecto
bilros de teia bordam solidão
enquanto meigos sussurros de sombra
no brilhante mutismo do espelho
recitam estrofes de poeira.


V
TE DEUM

Opressiva
a inquietude
no carrilar dos bronzes.

Libreto
de mil cactos
em mudo refrão dos desertos.

Dobre
de sinos
em solene Te Deum
de graças pela Maria.






quarta-feira, 22 de abril de 2020

Obra de Van Gogh roubada no museu da Holanda

Uma pintura de Vincent Van Gogh, originalmente chamado de "The Parsonage Garden at Nuenen in Spring", foi roubada no museu Singer Lauren, situado em Laren a 30 kms de Amesterdão na Holanda, que se encontra atualmente fechado devido à eclosão da pandemia de Coronavírus. Segundo o director executivo do museu,  a obra estava sob condição de empréstimo, a finalidade era a de ser usada  numa exposição. A mesma tinha sido emprestada pelo Museu Groninger, que apenas possuía esta única pintura de Van Gogh na colecção.

The Parsonage Garden at Nuenen in Spring
Segundo a imprensa Holandesa, a obra roubada é estimada  entre um e seis milhões de euros. Trata-se de uma pintura de 1884 que faz parte de uma série feita quando o famoso pintor vivia na casa do seu pai.

O director do museu, citado pelo "Diário de Noticias",  Jan Rudolph de Lorm, considera que o roubo é "muito mau para o Museu Groninger, para o Singer Laren e especialmente terrível para todos nós. A arte existe para ser desfrutada, especialmente durante este período difícil".

Por sua vez, Andreas Blühm director do Museu Groninger se pronunciou de seguinte forma,  "é o roubo de uma obra que pertence a todos".

O museu  está actualmente fechado devido ao coronavírus. E foi deste vazio que os ladrões aproveitaram para roubar a obra de Van Gogh, que na ocasião estava em exposição "Mirror of the Soul. Toorop tot Mondriaan" , que começou em 14 de janeiro e terminaria a 10 de maio do ano em curso.

Este não é o primeiro roubo no museu. Em janeiro de 2007, sete estátuas foram roubadas do jardim do mesmo espaço.
Quando se fala de obras de Van Gogh, refere-se a pinturas únicas e, provavelmente os autores deste roubo não poderão vender a obra no mercado de arte sem serem descobertos, mas seja com for, lá se foi a "The Parsonage Garden at Nuenen in Spring", pelas mãos dos supostos larápios.




terça-feira, 21 de abril de 2020

Sete poemas de Adilson Sozinho

Mauro José da Silva, com o pseudónimo Adilson Sozinho, nascido aos 06 de abril de 1995 na cidade de Maputo, é um jovem cadete da Academia de Ciências Policiais (ACIPOL),  poeta, capoerista e enxadrista.
Foi membro da Associação Artística a Fénix de Moçambique desde o ano de 2015 até o ano de 2017.
Participou em antologias internacionais com os títulos "Inspiração " organizada pelo poeta brasileiro João Israel Azevedo em 2019 e "Nossos Versos " organizada pela poetisa brasileira Cláudia Santos Oliveira 2016, " Corações em Brasa " organizada pelo poeta moçambicano Álvaro dos Reis 2020, participou também com três textos na obra " Duas Faces da Mesma Poesia " do poeta angolano Joel Caetano e lançou a sua primeira obra intitulada " As Memórias de Um Escreveta" em 2017 e irá lançar a sua segunda obra intitulada " Fui Para Dentro de Mim e não Voltei"
Adilson Sozinho 
I


HOJE


Posso olhar para as estrelas, 

para os coqueiros e as mangueiras;

Ver as sombras das folhas e ramos refletidos 

pela luz do luar na calada da noite.

Posso sentir a vegetação picar os meus pés 

calçados de chinelos baratos

e ver a cacimba em redor das luzes acesas nos quintais.

Posso ouvir e sentir o silêncio de um bairro tão agitado

e por alguns instantes pensar que vivo em um condomínio,

na casa 43, 

aqui no Xipamanine.


II

RIMA

Um pouco de xima e lagosta 

para acompanhar um lagostim 

(não sei se ela gosta

mesmo assim vamos fazer tchim tchim)

brindar o nosso sim

na lua de mel

(justificar o anel 

tornar isto cíclico 

não deixar que o mal nos seja cínico)

Vamos nos misturar e fazermos uma caipirinha, 

e espero que o sabor seja uma menininha

que chamaremos de Maria, 

e eu vos amarei como Craveirinha.

Na mesma mesa comeremos a sobremesa de colherinha.

A vida assim tornará nossa e não só minha. 

Vamos nos amar porque o amor é a vitamina,

e a paixão a proteína que fará o ódio sempre ficar na esquina. 

Vamos fazer amor das nove até as nove horas.

Não deixaremos de nos chamar de “love”

Embora seja apenas só um pouco de rima

queria mesmo acompanhar com xima,

mas não tem lagosta 

(e nem sei se ela gosta!).



III

CANHANGULEM OS BATUQUES 

Canhangulem os batuques!

Tenho vinho, capulana e o dinheiro.

No meio do quintal uma árvore.

Só falta cá o curandeiro.

Apitos e kulunguanas,

não precisam estar cá as mamanas.

É apenas a dor de amar que desejo pedir 

aos meus antepassados que tirem de mim.

Obra de Gilberto Muzilene
IV

SINTO QUE MORRO

Aos poucos,

morro

onde moro.

Aos loucos,

vivo bem e não mal,

sou imortal.

Enquanto isso,

sinto que morro,

e só me dói saber disso,

porque sinto que no teu coração eu não

moro!


V

Mais um Final de Semana


No arsenal uma arma me aguarda para o final de semana

E quem me ama, já não mais quer saber de nada

Já faz tempo que se sente traída

Não tarda, em breve contemplarei sua partida

Continuarei aqui submisso a um bem maior

Um bem que também devia suportar meu amor

Se não volto, guardo a sua noite e dos demais

Na sua enorme saudades só consegue enxergar as coisas banais

Não posso deixar de guardar e assegurar minha pátria por ti meu amor

Apesar da minha vida fazer mais sentido ao lado dela

Nasci para os outros sentinela

A dor da minha ausência, pude sentir nela

Mas enquanto fizer, sol e chuva

Enquanto fizer calor e frio

e houver noite e dia

É esta arma que me irá fazer companhia nas madrugadas

Tudo irei superar, até a sua partida, amor!


VI

Natasha

O sol tem vergonha de brilhar junto de ti

ele esconde-se entre as nuvens

e deixa o teu sorriso fazer o seu trabalho

O vento teme em passar por ti

pois na tentativa de desmanchar o teu penteado

O vento desmancha-se ao corar

de tanta beleza e charme

O fogo já não mais queima como me queima este sentimento que sinto por ti

E se um dia algo tiver que ser sólido como o gelo que um dia afundou o Titanic

Que seja o amor

E se for para afundar nesse embate de nós dois

Que seja em lágrimas de tanta felicidade

Pois o meu real objectivo é mais o anel

do que a lua de mel

E não me vou atrever em não citar Danilo Mucambe

Natasha... 《...foi por te não conhecer que Da Vinci pintou Monalisa.》

Pois se tivesse te conhecido

Seria o teu rosto que estaria em grandes museus

Por agora não só o teu rosto, mas tu por inteira

É que está no museu do meu coração.


VII

PROMOVIDO

Eu o poema,

antes sujo e desempregado

pobre de vistas e leitura

Fui promovido como o chefe do livro,

o poema preferido.

Agora, me banho de leitores

O último verso não conhece lude

Só kiwe!

O primeiro verso tem os cabelos da semântica bem penteados.

Assumo agora um cargo de responsabilidade, sou o mais novo poema da página 43

domingo, 19 de abril de 2020

Mapiko: Uma manifestação cultural maconde que identifica Moçambique

Moçambique é um país conhecido pela sua imensa vastidão cultural, do Rovuma ao Maputo encontramos diversas realidades culturais, ligadas por um cordão umbilical chamado unidade. 
Viajando para a região norte do país, na província de Cabo-Delgado, encontramos uma dança muito comum entre o povo maconde,  o Mapiko. Apesar do seu papel para o incremento da cultura moçambicana, esta dança, poucas vezes (ou quase nunca) é reportada nos meios de comunicação social, fazendo que seja esquecida e pouco conhecida pela juventude.
Dança Mapiko
Na verdade, Mapiko é mais que uma dança, mas sim uma manifestação cultural tradicional que mistura música, dança, escultura e teatro. Mapiko é  rodeado de segredos e mistérios, carregados pelo dançarino sempre mascarado, que executa os movimentos consentidos pelo som dos batuques e das cantorias tradicionais.
Para o imaginário maconde, o dançarino mascarado está inteiramente ligado ao mundo espiritual e suas crenças, (conjuga o sobrenatural, espiritual e crenças).

A máscara e a dança, formam uma coreografia ritmada, transmitida pelo dançarino que se apresenta vestido com trajes convincentes coberto de objectos sonoros (chocalhos). Sendo acompanhado por vários batuqueiros, criadores dos seus próprios tambores que são feitos de madeira e cobertos de pele de animal.
As máscaras macondes, são cobiçadas  por muitos colecionadores de arte e se encontram expostas em vários museus da Europa e no país. São consideradas a melhor representação da arte da escultura em madeira, nativa moçambicana, feita pelos macondes.

As máscaras usadas para a execução do Mapiko, são esculpidas em madeira leve, pelos escultores ou homens mais velhos da aldeia. Geralmente são feitas no Mpolo, que é uma  pequena casa destinada para o efeito, longe de todos os olhares curiosos.
 Existem dois tipos de máscaras para dançar Mapiko, a facial (só cobre o rosto) e a capacete (que cobre toda a cabeça). Ambas as máscaras cumprem o seu papel de salvaguardar a identidade do dançarino.

Para dançar, o dançarino usa a máscara, de maneira a ficar com a cabeça tapada e com o rasgo da boca à altura dos olhos. À volta do pescoço, um pano colorido de seda tapa o bordo da máscara, conjugando uma indumentária complexa que procura esconder todo o corpo do dançarino, não permitindo revelar a sua identidade.

Mapiko é uma manifestação cultural, geralmente executada nas principais festas e cerimónias da aldeia, nos ritos de iniciação dos jovens e das mulheres, que têm por objectivo integrar o indivíduo no seu novo grupo social.
Dependendo da cerimónia  a máscara, pode representar figuras de animais (coelho, leão, cão, leopardo, hiena), como também pode representar uma figura humana, que simboliza o espírito de um defunto a ser invocado. Da cintura para cima todo corpo do dançarino fica coberto de guizos.

O elemento central do mapiko é o "lipiko", que é o dançarino principal, este deve estar, necessariamente, envolto em panos e mascarado com um determinado tipo de máscara. 
A dança inicia com o tocar do batuque, "likuti", e é acompanhada por um coro formado pela assistência, que se dispõe de modo a formar um corredor por onde deve passar o "lipiko". Na extremidade, surge o dançarino que, à grande velocidade, entra no recinto de dança e se atira contra o muro formado pela assistência, que recua assustada. O coro canta e dialoga, através de gestos, com o "lipiko".

As máscaras dos macondes traduzem os antigos usos, costumes, tradições e superstições. São de grande interesse etnográfico e revelam a identidade cultural do povo maconde.
Importa referir  que o nosso país, deverá submeter em breve uma candidatura, para que se considere o mapiko o Património Cultural Imaterial da Humanidade. Sendo esta, a forma encontrada  para salvaguardar a dança e música dos povos Maconde, que têm desempenhado um papel importante, na difusão da cultura moçambicana além fronteiras.





sábado, 18 de abril de 2020

"A moça do shopping é uma história real"- diz Valé Valentão

Por: Nwatshukunyane Khanyisane

Provavelmente tenha ouvido a música ""Moça do Shopping Center do jovem cantor, guitarrista, baixista e compositor moçambicano Valé Valentão. É uma canção que na sua essência guarda uma suavidade e romantismo, que encanta quem a ouve.
Apesar de ser um homem de poucas palavras, Valentão, de 26 anos de idade, residente no bairro da Polana Caniço em Maputo, aceitou a entrevista da Massala Arte e contou-nos sobre a sua carreira musical e como activista social.
Valé Valentão 
Massala Arte (MA): Quem é Valé Valentão?
Valé Valentão (VV): Sou um músico moçambicano e activista social.

MA: Qual é a tua inspiração para compor suas  músicas ? 
VV: A inspiração para compor as minhas músicas nasce do quotidiano e, das histórias vivenciadas por mim.

MA: Percebe-se nas tuas músicas uma veia romântica, de onde vem esta veia?
VV: Esta veia vem de uma parte do meu íntimo e de histórias que me são contadas.

MA: A música moça  do Shopping Center, é uma história real ou ficcional? Essa moça existe ou é apenas personagem? 
VV: É uma História real, a personagem  realmente existiu. Acredito que, toda a história de amor começa em algum lugar e, não foi diferente comigo, por isso intitulo a música moça do shopping center.

MA: Quais os artistas moçambicanos que mais admira e porquê? (Pode dizer dois internacionais).
VV: Admiro os artistas mocambicanos, Michel William e Amável.  O Amável em particular, por ser um grande guitarrista.  E o Michel William, pela fusão, ele canta  marrabenta, raggae, ska e fusion. E quanto aos internacionais, gosto de Richard Bona e John Mayer.

MA: Qual é o estilo musical que canta?
VV: Canto Pop-Rock, com influências de  marrabenta, bossa- nova e jazz.

MA: Sente que as tuas músicas estão a ser bem recebidas pelo público? 
VV: Creio que sim, mas acho que o público precisa escutar mais as minhas músicas.

MA: Soubemos que viajou para o Brasil. Fale-nos desta experiência.
VV: Foi incrível, trabalhei como voluntário no maior programa sociocultural do Brasil, promovendo a educação musical para crianças entre 6 e 17 anos, no Projecto Guri.
Participei do intercâmbio MOVE ( Musician Organizer Volunteer Exchange ) é no Brasil, onde tive a oportunidade de apresentar minhas músicas autorais  com a Orquestra Projecto Guri de São Carlos, em São Paulo.

MA: Como surge o convite para viajar ao Brasil?
VV: Pela abertura do concurso MOVE ( Musician Organizer Volunteer Exchange ).

 MA: Qual é o teu maior sonho na musica? 
VV: Meu sonho é ter o meu trabalho conhecido e reconhecido mundialmente e sentir o amor dos meus fãs.

MA: Quem tem apoiado a sua carreira?  
VV: Tenho tido apoio de todos meus amigos, fãs, familiares e simpatizantes.

MA:Exceptuando a música,  Valé tem uma outra paixão? 
VV: Sim.  Artes plasticas.

MA: Além de pop rock, qual é o estilo musical que o Valé apostaria? 
VV: Apostaria no jazz

MA-Com que músico gostaria de fazer um dueto? 
VV: Com o músico Brasileiro, Roberto Carlos e o guitarrista moçambicano Amável.

MA. Fale-nos do Valé Valentão activista?
VV: Sou co-fundador da Associação Nsinha Wanga, cujo principal objetivo é sensibilizar as crianças a cultivarem o amor pela nossa cultura e pelo meio ambiente. Visto que o nosso planeta está a enfrentar problemas ambientais muito sérios como o desmatamento, a poluição do ar.
Estimular as crianças pode causar um impacto positivo na nossa sociedade, como diz o dutado  "é do pequeno que se torçe o pepino".

Faço parte da Associação Irmandade que tem o objetivo é trabalhar com crianças e protegê-las, salvaguardados seus dereitos e providenciado educação de qualidade, é a chave para a prosperidade e o desenvolvimento.

Podes baixar a música moça do Shopping Center aqui

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Seis poemas de Fernando Leite Couto

Jornalista, poeta, editor e tradutor, Fernando Leite Couto nasceu em Rio Tinto, arredores na cidade do Porto, em Portugal, à 16 de abril de 1924.
Fernando Couto referiu-se a si próprio como "jornalista, e nunca escritor". Apesar desta afirmação de Couto, o seu legado vai além do jornalismo, tendo sido um dos responsáveis da Editora Ndjira e das suas mãos muitas obras poéticas foram escritas.
A sua produção jornalística marcou a imprensa escrita, onde assinava muitos dos seus trabalhos com o pseudónimo Pai Fernando.
Antes de 1971, ano de edição da obra "Feições para um Retrato", Couto publicara, "Poemas Junto à Fronteira" (1959), "Jangada de Inconformismo" (1962) e "O Amor Diurno" (1962).
Fernando Leite Couto,  faleceu em Maputo, à 10 de janeiro de 2013. E deixou uma vasta lista de obras publicadas e contribuições valiosas no jornalismo.

 Obras poéticas publicadas:
Poemas junto à fronteira. Beira: Edição do autor, 1959.
Jangada de inconformismo. (Colecção "Poetas de Moçambique). Beira: 1962.
O amor diurno. (ilustrações José Pádua). Beira: Edição do autor, 1962.
Feições para um retrato. Beira: Edição ATCM, 1971.
Monódia. Maputo: Edição AMOLP, 1987.
Os olhos deslumbrados. Maputo: Editorial Ndjira, 2001.
Rumor de água - Antologia Poética de Fernando Couto. (Organização Ana Mafalda Leite). reúne todos os títulos anteriormente publicados, assim como alguns inéditos. Lisboa/Portugal: Instituto Camões. Maputo/Moçambique: Editorial Ndjira, 2007; 2011.
Vivências moçambicanas (crónicas).  Maputo: Editorial Ndjira, 2008.
Uma voz cheia de vozes. (prefácio Luís Carlos Patraquim). Maputo: Editorial Ndjira, 2015.

Percurso no jornalismo:
Tempo inteiro
 O Século - Lisboa
 Notícias - Beira e Maputo
 O Comércio do Porto - Porto

Com colaborador:
Notícias da Beira - Beira
 Diário de Moçambique - Beira
 Notícias - Delegação da Beira
 Europeu - Lisboa
 Paralelo 20 - Beira
 Lamego Hoje - Lamego
 Savana - Maputo
 Domingo - Maputo

Com correspondente:
Jornal de Notícias- em Maputo e na área do Douro-Sul
 O Comércio do Porto- em Maputo

Na Rádio:
Aero-Clube da Beira
Rádio - Clube de Moçambique (Lourenço Marques)
Rádio Moçambique - Maputo


Fernando Leite Couto

I
Manifesto

Poesia não te peço trigo
pois sei que não és seara
e nem ao menos és terra.
Quero-te só cotovia
no espesso dos trigais
e canto da madrugada.
Não podes servir de pão
a quem outro não tiver.
Podes uivar e chorar
ser o grito de esfaimados
bandeira de barricadas
cólera das nossas veias
mas não és terra ou seara
Nem balas nem espingardas.
Quero-te só cotovia
Íntima voz do meu sangue.


II
O amor diurno

Em teu sereno rosto
se ergueu o vento
querida
uma leve crispação
corre a sua linha de água
em tuas feições ondulando
querida

Teus olhos se fecharam
querida
lagos sobmersos
pejados de trevas e desejos
de prazer e dor
ó doce querida

Mar nocturno e agitado
e sua audível presença
querida
um grito surdo
túmido e lento agoniza
em tua garganta opressa
ó doce querida

Tuas mãos esguias
minha querida
asas transparentes e brancas
de aves aquáticas
um vento de loucura
as possui e agita
desnorteados barcos
navegando às cegas no meu corpo
minha querida

Em teu sereno rosto
agora apaziguado
o vento torna a ser brisa
querida
com a quietude das manhãs de verão
e a fadiga
já sobre a areia
depois do naufrágio
ó doce muito doce querida

III
Praia do savane

Tu apenas tu e rodeando-te
a imensidão do mar
e a savana imensa
e o céu abrindo e fechando
todo o horizonte à sua volta.

O bramido oceânico
e o fundo silêncio da savana.
E a solidão a solidão
e as aves marinhas
confirmando a solidão ...

Livre te sentes é verdade
mas também perdido
e inútil esta liberdade
Adão que és agora ínfimo
desolado e inquieto
contemplando o mar perplexo
contemplando-o como se as ondas
te pudessem decifrar o mistério
desta absurda criação
de deserto de mar e de terra
de silêncio de vento e de aves ...

IV
Paisagem africana

Em chamas de amarelo e rubro íntimos
inquietas deliram as flores de acácia

fofas e tépidas as dunas impudentes
imitam feminis curvas em consentimento

da terra solta-se o hálito escladantes
de sequisoas bocas em beijo interrompido

Verdes-escuras as folhas dos arvoredos
turvas pesam como um desejo insatisfeito

denas as florestas odorantes a húmus
respiram o ácido cheiro do suor de cópula

crestado o capim estremece compacto
como a epiderme ocorrida por um frémito

brutais os rios rasgam a carne das planícies
como soldados invasores às filhas dos vencidos

e à brutal excitação de um sol desumano

a terra de África abre a flor de duas pétalas rosáceas

V
Passagem da fronteira
Ou exortação a Hamlet

Alto vai o cheiro a podre
no reino da Dinamarca.
Mataram o velho rei
e é perdido o tempo de carpir.
Ei-la urgente toda imperiosa
a hora terrível da decisão.
E nem sequer se pode pensar
no aliciante do não-ser:
não faz ninho a cobardia
nos jovens corações.
Com a lucidez de quem inteiro avista
o escabroso caminho além,
afastada por agora a dúvida,
vamos, Hamlet, para a decisão de ser
afrontar os riscos.
E o resto não será silêncio.

VI
Quero-te poesia

O rumor audível
de um fio de água
deslizando breve.
A leve carícia
aflorando o rosto
com pudor de ternura.
A melancolia do adeus
inevitável e definitivo.
O bramido da cólera
dos ofendidos e humilhados
com vigor do vento
nos altos montes
ou tão só o choro silencioso.



segunda-feira, 13 de abril de 2020

Sete poemas de Rui Nogar

Nascido em Maputo em 1932, Francisco Barreto, sob o pseudónimo de  Rui Nogar assinou os seus textos.  Publicou poemas em jornais como “O Brado Africano” e “Itinerário”. Desde 1964, Rui Nogar foi militante da Frelimo e  posteriormente preso pela PIDE.
A seu livro de poesia "Silêncio Escancarado", foi publicado em 1982, pelo Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD), e resultou da reunião de diversos poemas do autor, muitos deles escritos no tempo em que esteve preso. 
Rui Nogar, figura na lista dos autores mais ouvidos durante os primeiros e agitados anos após a independência de Moçambique, onde também encontramos nomes como José Craveirinha e Noémia de Sousa.
 Nogar morreu em Lisboa, Portugal no ano de 1994.

Rui Nogar
I

XICUEMBO

Eu bebeu suruma
dos teus ólho Ana Maria
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco

agora eu quer dormir quer comer
mas não pode mais dormir
não pode mais comer

suruma dos teus ólho Ana Maria
matou sossego no meu coração
oh matou sossego no meu coração

eu bebeu suruma oh suruma suruma
dos teus ólho Ana Maria
com meu todo vontade
com meu todo coração

e agora Ana Maria minhamor
eu não pode mais viver
eu não pode mais saber

que meu Ana Maria minhamor
é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
todo gente todo gente

menos meu minhamor.



 II
Poema do beber no antigamente 


Poema do beber no antigamente
dobro a esquina da memória
a mais próxima dos amigos de então

e ali fico
sob a luz que no poste
me derrama em mil sombras
que uma a uma reconheço

o que fui o que sou
o que um dia quiseram que eu fosse
mas não fui
o que a esquina da memória dobrou
e no poste sob a luz se inspirou

sou eu não sou
na dialéctica da vida
fui aquele que nunca foi
sou aquele que sempre será

assim
a beber no antigamente
ficou-me a sede
do eternamente


III
 Da fruição do silêncio

Tratávamos o silêncio por tu
Dormíamos na mesma cela
Acordávamos do mesmo sono

Cada sílaba audível
Completamente nua
Feria dum segundo sénticfe.
O palato hipertenso
Da fria cela dezanove

Farrapos de ambiguidade
Pendiam pelas arestas
Das mais afoitas vogais

Ninguém pressentia
No gume acerado
Da quase indiferença
Que o silêncio aparentava
O perfeito sincronismo
Das sílabas dispersas
Pêlos tímpanos de cada um

Nada sabíamos de nós próprios
Além da angústia lacerante

Coagulando-nos um a um
Nos limites da expectativa

E no écran memorial
Milhões de imagens se degladiando

Era o silêncio devorando o silêncio
Era o silêncio copulando o silêncio
Era o silêncio assassinando o silêncio
Era o silêncio ressuscitando o silêncio

Oh o silêncio o silêncio
Maldito silêncio colonial
Fuzilando-nos um a um
Contra as paredes da solidão

Oh o silêncio o silêncio
Maldito silêncio imperial
Sepultando-nos um a um
Sob os escombros de Portugal


IV
De antes que expirassem os moribundos

As balas doem companheiros

Não a dor física
Do chumbo percutido
Que o ódio calibrou
No almofadado sossego
Dum gabinete qualquer
Não
Não a presença agónica
Dessa infalível certeza
Que irredutível se insinua

Nas fracções de segundo
Que os séculos devoram

As balas doem sim
O tempo que nos faltou
Para salvar os companheiros
Nossos velhos companheiros
De novas humilhações
Novas rotas de cacau
Cacau oiro e marfim

Novos escravos a leiloar
Nos areópagos da hipocrisia
Novos deuses crucificados
Na subversão das micaias
Que a nossa África abortou

Oh as balas doem sim irmãos

As balas doem

Obra de Gilberto Muzilene

V

 Elegia a mamana Isabel

Os jornais o disseram
morreu António Caetano
velhísisimo velho colono.
Lutou por Moçambique
no tempo do Gungunhana.
Lutou por Portugal
durante a Grande Guerra.
Lutou e venceu.
Só agora foi vencido: morreu.

Os jornais o disseram
mas eu sei ah! dolorosamente eu sei
quem morreu não foi ele
foi maman Isabel

quarente e dois anos à sombra
da modesta reforma
do velhíssimo velho colono
esboroaram-se naquele dia

quarenta e dois anos em que foram dois
dormindo comendo esperando
na frágil e velha cabana
do velhíssimo e velho colono
senhor António Caetano
quarenta e dois anos
de ajuda carinho compreensão
quarenta e dois anos
de luta desespero resignação
quarenta e dois anos

ah! quarenta e dois anos se foram
quando morreu António Caetano
velhíssimo velho colono.


VI
 Nova dimensão 

Esta borboleta
Que volitando vai
De cama em cama grade a grade
De não-penses-mais
A um-dia-hás-de-sair
Não é uma borboleta vulgar

É sim uma borboleta
Borboleta ainda
Que um homem nesta prisão
Jurou libertar um dia
Para um voo universal
Do ciclo deste poema
Nas praças desta nação

É uma borboleta sim
Que ela aprendeu a amar
Em cada nova tentativa
De profundas metamorfoses

Sim
Borboleta política
Casulada seis meses
Na cela número três
Na Penitenciária Industrial
Da Colónia de Moçambique…


VII
Faltou Jesus nessa noite agoirenta

Embora as iguarias e demais apóstolos
Sem os trinta dinheiros e o beijo fatal
ninguém se atreveu a tocar no pão

Não se podia alimentar a lenda
sem as pupilas incandescentes
do tal judas o traidor

Judas bode expiatório
da sacrossanta impunidade
Judas
pólo de irrevogável inclemência
do ideário cristalizado

Judas será Judas
Quer ele queira quer não
e a essência das coisas dogmatizadas
deve aspergir sobre o medo inteiro
dos que aprenderam a soletrar assim

E há depois também as conveniências
dos que pintam
dos que vendem
dos que sobretudo compram
últimas ceias pelo mundo fora

Ah Judas traiu mais uma vez
eis o que sobra na mesa posta
não haverá ceia por esta noite
e Cristo apesar de Cristo e milagreiro
passará fome como um simples mortal

Como um desses milhões de famintos
que dão de comer a quem não tem fome

E assim chagados
ámen para todos os pacientes

Porque nós dizendo não
alimentaremos a revolução